Uma bandeira, suspensa no mastro, só adeja quando o vento se levanta; um homem suspenso na vida tem que empurrar a brisa à medida dos seus desejos, assim falava mau pai, a propósito da mornaça que roía os ossos a muitos dos seus patrícios.
Diga-se, em nome da verdade, que nunca esqueci a sua filosofia. Sempre desejei enfrentar os desafios que julgava reservados a homens de têmpera rija. Essa vontade impeliu-me a encarar o medo e invadir o sótão do avô. Era urgente apagar as sombras recortadas na parede, que se moviam com pés de veludo; sufocar a voz do Adamastor, escondido atrás dos caixotes; esganar, no interior de cada mala, as almas penadas de antepassados que recusavam guarida noutras paragens.
Acometer, sozinho, estes fantasmas, foi a primeira prova de fogo a que me obriguei voluntariamente. Com temor, agasturas na boca do estômago e o couro cabeludo arrepiado, subi a escada numa locomoção que denegria o orgulho de qualquer homo erectus. Apesar de magro, os braços e as pernas mal suportavam o peso do corpo. Os ouvidos não deixavam escapar o mínimo bafo, por mais inodoro que fosse; as órbitas dos olhos giravam como radares, trespassando o silêncio tenebroso da penumbra. Cada escalada de um degrau era um progresso vitorioso, a caminho da minha emancipação.
Nos momentos de fraqueza, os olhos subiam inconscientemente em direção ao firmamento, repetindo o gesto atávico de gerações impotentes para rasgarem o seu caminho. De forma atabalhoada, solicitei a proteção divina: “Pai-Nosso que estás no sótão, santificado seja o vosso nome, entre os diabos e as bruxas que aqui vivem”. Nem o Pai nem o Filho se comoveram, nem tão pouco se mostraram benevolentes. Na sua infinita misericórdia, podiam ter evitado a incontinência, mal os dedos se fincaram no último degrau. Que vergonha! Que rótulo tão confrangedor para quem pretendia entrar com dignidade no patamar da glorificação. Subir ao pódio com as calças a escorrer o pânico pela braguilha, desacreditava qualquer herói.
Fui avassalado por momentos de pavor. Ser achincalhado na praça pública – “Lá vai o mija nas cuecas”-, era um estigma deprimente para o resto da vida. Conheci bastantes rapazes que haviam perdido, para toda a vida, o nome do batismo, para serem alcunhados por atos reveladores da respetiva fraqueza humana. Respirei fundo, retesei os músculos e decidi que o incidente não me inibiria de transportar a coroa de louros. Ensaboei as calças às escondidas e pendurei o trauma na corda da roupa.
Ao cabo de pouco tempo, domestiquei os fantasmas e passei a tratar os papões como meros fantoches de um teatro burlesco. A partir de então, o sótão do meu avô e a sua magia eram uma forte componente do universo lúdico, que fui construindo. Espaço de imaginação galopante, onde eu próprio encarnava personagens de outras épocas com a maior naturalidade. Ao pegar num velho brinquedo, que por lá andara esquecido, o milagre da ressuscitação acontecia. Através dele reinterpretava brincadeiras, onde a alegria, as cores, os cheiros ou a zaragata da correria retomavam o lugar que lhes pertencia.
Ali encontrava o refúgio mais seguro para o jogo das escondidas. Quem se atreveria a rasgar aquela muralha de teias de aranha, que se colavam ao cabelo como massa de pão peganhenta? Nem sequer um valente soldado de Afonso Henriques, vestido de Cruzado, a escorraçar a moirama das ameias do castelo. Além do mais, aquele era um lugar assombrado, na versão da minha avó. Dizia ela que ouvia loiça a partir-se, móveis a arrastar, vozes metálicas a discutir partilhas de terras, em lugares completamente desconhecidos. Não admitia que pudessem ser ratos ou doninhas. E eram, que bem os vi roçando o pelo cinzento contra o forro de madeira. Não tinha medo, mas enojavam-me. Deles, defendia-me com um escudo protetor credenciado, o Patusco, um velho gatarrão acobreado, de bigode sedoso e unhas bem afiadas. Mal lhe sentiam o cheiro, infiltravam-se por entre o estuque, numa correria desenfreada para lugar seguro.
Sempre que pressagiava azedumes nas conversas entre os adultos, ali me enfiava à procura de sossego. Detestava brigas inúteis, com a voz altercada, cujo único objetivo era não dar o braço a torcer. E nesses momentos, até a boca santa de minha avó praguejava, sem qualquer pudor: “Má fogo te abrase, seu estupor!”
Debaixo da claraboia, com o sol a bater nas pernas, estirava-me no chão olhando o firmamento, enquanto a borrasca familiar não terminasse. Certas noites de céu limpo, erguia-me sorrateiramente e escapulia-me para apreciar as estrelas. Com uma varinha de cana, media e anotava a distância entre as constelações. Ursa Maior, Ursa Menor, Cassiopeia e Orion, com as suas três Marias, eram minhas companheiras e musas de inspiração. Pela mão delas rabisquei o meu primeiro verso de amor, dedicado a Rosalina. Entreguei-o em mão própria, numa manhã radiosa, caminhava ela para a escola. A trança escura caída sobre o ombro, com um pequeno laço alaranjado na ponta, possuía todo o brilho e o encanto da mais pura constelação.
Pus-me a espreitar as estrelas
Não fui capaz de as contar
Mas agarrei duas delas
Irmãs gémeas do teu olhar.
O meu esforço não foi suficientemente arrebatador, para iluminar o coração de Rosalina. Os seus olhos andavam colados na terra que pisava, em passo miudinho para não se desequilibrar. E isso bastava-lhe. As estrelas pertenciam a um outro mundo que só mais tarde viria a descobrir nos olhos de outro, que não os meus.
Carlos Manuel Pimentel Enes, professor do ensino secundário e superior, investigador de temas de história açoriana. Natural de Vila Nova, ilha Terceira, Açores.