Pedro Almeida Maia faz parte de uma nova geração de escritores açorianos que está a dar muito boa conta de si: Joel Neto, Nuno Costa Santos, João Pedro Porto, Paulo Freitas, Sónia Bettencourt, Luís Filipe Borges, Joana Félix, Luís Mesquita de Melo, Marta Dutra, Alexandre Borges, Carolina Cordeiro, Fraga da Silva, Diogo Ourique, Gina Ávila, Maria João Dodman, entre muitos outros.
Estamos perante uma geração empenhada na construção de um espaço cultural novo, aberto, progressivo e na sua defesa, uma geração que já nasceu emancipada, muito crítica, pouco ancorada na ideologia, mas muito interessada em redimensionar o espaço literário que é todo seu. São autores com mais imaginação do que memória, gente que passa mais tempo nas redes sociais do que nas tertúlias de cafés… Uma geração muito bem formada, assertiva, contraditória e que, com os Açores no coração, vê e reflete estas ilhas de dentro para fora e de fora para dentro. Uma geração em fase de processo que ainda não escreveu as suas obras maiores e de quem muito há ainda a esperar.
Estes autores, não prescindindo da sua condição insulada, têm vindo a abrir-se ao enigma do mundo numa escrita que parte da ilha para espaços universais. Deixaram-se de nebulosidades narrativas, e optam decisivamente por uma escrita que parte do eu para os outros. E este é seguramente um caminho a ser trilhado. Para que a açorianidade literária não se deixe ficar ensimesmada nas ilhas.
De resto, nunca será de mais lembrar que Portugal possui nos Açores uma das suas grandes riquezas literárias, sendo que a história dos Açores é precisamente a consciência escrita dos Açores.
Publiquei, há algum tempo, uma lista com cerca de 400 autores nossos que, no passado e no presente, dão corpus a uma muito dinâmica literatura de expressão açoriana. Nesta matéria, convirá referir que há mais literatura para além dos “clássicos” Antero de Quental, Teófilo Braga, Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio, Armando Côrtes-Rodrigues, Natália Correia, Dias de Melo, Pedro da Silveira, Daniel de Sá ou Emanuel Félix. E há muitos outros nomes para além dos já consagrados José Martins Garcia, Santos Barros, Cristóvão de Aguiar, Norberto Ávila, Fernando Aires, Rui Rodrigues, Borges Martins, Mário Machado Fraião, Madalena Férin, Marcolino Candeias, João de Melo, Álamo Oliveira, Onésimo Teotónio Almeida, Urbano Bettencourt, Maria Luísa Soares, Emanuel Jorge Botelho, Vasco Pereira da Costa, Madalena San-Bento, entre outros, ou dos que estão em vias de consagração como Manuel Tomás, Katherine Vaz, Luís Fagundes Duarte, Carlos Enes, Francisco Cota Fagundes, Gabriela Silva, Eduardo Bettencourt Pinto, Carlos Alberto Machado, José Francisco Costa, Ivo Machado, Ângela Almeida, Ana Paula Costa, Frank Sousa, Sidónio Bettencourt, Carlos Bessa, Rui Machado, António Bulcão, Carlos Tomé, Luísa da Cunha Ribeiro, Paula de Sousa Lima, Daniel Gonçalves, Leonor Sampaio da Silva, entre muitíssimos outros.
Pedro Almeida Maia é herdeiro de toda uma tradição literária que parte de um lirismo melancólico para um certo simbolismo insular (Roberto de Mesquita), de um açorianidade telúrica (Vitorino Nemésio) para um neo-realismo ilhado (Dias de Melo) e, mais tarde, para algumas interessantes experiências do realismo fantástico (João de Melo).
Este contexto ajuda-nos a perceber melhor A escrava açoriana (Cultura Editora, 2022), o último romance de Pedro Almeida Maia, cuja ação se estende dos finais do século XIX para a transição do século XX. O tema não é novo, pois que em As Farpas, no mesmo capítulo em que advogavam a venda das colónias, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão teciam duras críticas à emigração clandestina e à “escravatura branca”, denunciando a ganância de engajadores e referindo situações em que muitas açorianas, seduzidas, violentadas e abandonadas, acabavam escravas e prostitutas em terras brasileiras.
Pedro Almeida Maia, combinando rigor histórico com ficção narrativa, conta-nos a história de Rosário, uma jovem pobre de Ponta Delgada que, em 1873 e com apenas 15 anos de idade, emigra para o Brasil acompanhada da mãe, Adelaide, à procura de um pai que nunca encontrará e numa viagem (nos porões do vapor “Lidador”) que durará cerca de um mês e feita sob péssimas condições de higiene e segurança, de que resultará a morte da progenitora. Antes da partida é-nos dado um magistral retrato (a preto e branco) das muitas penúrias e múltiplas indigências da ilha de São Miguel: uma sociedade arcaica e fechada no seu ruralismo agrário, no seu conservadorismo bacoco, no seu analfabetismo envergonhado, na sua devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres… Tudo isto em tempo também marcado pela crise do comércio da laranja e numa altura em que o lugar das mulheres cristãs era em casa a cozinhar e a cuidar dos filhos…
Chegada ao Rio de Janeiro, Rosário será vendida como escrava e empurrada para a prostituição. Com um exemplar de Amor de Perdição à mão, sempre com a recordação do “pio do milhafre” e com cheiros e odores nauseabundos em fundo, assistiremos à saga de Rosário, isto é, à sua experiência em terras de Vera Cruz feita de sofrimento, desgosto, luta e resiliência. Sete anos depois, a protagonista regressará à sua ilha natal, “com menos do que quando saíra”. E mais não digo.
Acrescentarei apenas que, na minha opinião, Rosário, pela sua riqueza humana e fundura psicológica, é digna de entrar na galeria das grandes personagens do universo feminino da literatura portuguesa: por ser irreverente e insubmissa, suscetível e insatisfeita, complexa e enigmática, inconformista e inconformada, inadaptada e incompreendida, simultaneamente vítima e agressora, sempre em busca do amor, do sonho, da felicidade e de caminhos de futuro. Mais do que uma história de escravatura, esta é, acima de tudo, uma história sobre libertação. A de Rosário, por exemplo.
Tendo como narradora a filha de Rosário, romance com imensas possibilidades cinematográficas, A escrava açoriana, escrito com fluidez narrativa, espessura evocativa, capacidade descritiva e uma muito atenta observação do humano, lê-se com aquele “plaisir du texte” de que falava Roland Barthes. A merecer por isso a nossa melhor atenção.
Horta, 28/08/2022
Victor Rui Dores