NO SILÊNCIO DESTE DIA QUE AMANHECE
Duas orações famosas e muito bonitas, pregando a paz e supondo o silêncio, foram atribuídas a São Francisco de Assis, este improvável padroeiro de políticos que sempre defenderam o dito “é dando que se recebe”. Isto é, dando o que é dos outros, recebendo o que é não é deles.
Provavelmente estas orações sejam de autoria anônima. Da Oração do Amanhecer pouco se sabe. Da Oração de São Francisco sabe-se que seu autor é um católico anônimo, que a deu de graça ao padre da paróquia que frequentava.
Foi publicada pela primeira vez em 1912. Os jornais que mais a divulgaram originalmente foram o La Croix (francês) e o L´osservatorio romano (do Vaticano).
Nos anos 20, um folheto com a imagem de São Francisco de Assis trazia no verso a oração, então já famosa, e a autoria foi atribuída ao santo.
O silêncio está em falta no mundo inteiro. O dedo indicador sobre os lábios desapareceu ou tornou-se um sinal inútil. No máximo, por enquanto ainda podemos substituir os ruídos por música.
É frequente que a nosso lado estejam pessoas que não prestam mais atenção a ninguém, somente a elas mesmas, refugiadas em seus fones de ouvido.
Assim, não é de todo espantoso que já ocorra o que Umberto Eco imaginou numa de suas crônicas publicadas ainda no ano 2.000 e intitulada “Compreremo pacchetti di silenzio?” (Compraremos pacotes de silêncio?).
O grande professor e escritor italiano dizia que a profecia de Giovanni Papini tornara-se realidade e que, sendo impossível cancelar os ruídos desagradáveis, era necessário providenciar contrarrumores agradáveis. Dava como exemplo desta iniciativa as músicas de aeroporto, que têm como objetivo amenizar o barulho dos aviões.
Tal como na Itália, no Brasil, já de si tão expansivo em todos os sentidos, o silêncio tornou-se uma utopia. Os ruídos são invasivos, insuportáveis e, pior de tudo, ubíquos.
Não há mais refúgio. Não se encontra silêncio em lugar nenhum. Nem nos templos e nas igrejas, onde muitos sacerdotes e pastores deram em abolir o recolhimento e a transcendência inerentes a esses locais e de uns tempos para cá providenciaram diversos barulhos para animar suas missas e cultos.
Depois de um dia de trabalho, quando você pensa que se livrou do barulho e entra no elevador, vem a “música de elevador”, que às vezes é mais irritante ainda.
Você desce do elevador e eis a rua, sempre ruidosa, mesmo tarde da noite. Não há mais horas mortas. Agora somente há horas vivas, buliçosas, estrondosas..
Seja qual for o transporte que você utiliza para chegar em casa e usufruir um pacote de silêncio -, o carro, o ônibus ou o metrô, todos invadem seus ouvidos. Os olhos você fecha, o nariz você tapa, o tato você protege, mas os ouvidos não têm proteção. O máximo que você pode fazer é amenizar os barulhos ou substituí-los por outros.
Por fim, depois de um dia inteiro de trabalho, seja qual for a medida do seu dia – garçons, cozinheiros, médicos, enfermeiros e outros profissionais dos ciclos noturnos, como os professores e os jornalistas, trocam boa parte do dia por boa parte da noite – você adentrou ao sagrado recesso do lar e acha que, agora, sim, você terá direito à quota de silêncio que lhe cabe, mas eis que seu vizinho pode ser um bárbaro ainda inalcançado pelos deveres mínimos da civilização, que o obrigariam a respeitar o espaço do semelhante, coisa que ele desconhece ou finge ignorar.
E, dentro de casa, a televisão rosna. Você não a ligou? Que importância tem isso? Outros, sob o mesmo teto ou sob o teto vizinho, a ligaram. E você acompanha telejornais, filmes, seriados e telenovelas à distância ou face a face.
Em resumo, você quer ler ou ouvir música, ou as duas coisas juntas? Será que você conseguiu ler este texto em silêncio ou pelo menos escolheu de trilha sonora o barulho que você queria?
Há alguns séculos, talvez agora sejam mais bem entendidos, homens e mulheres se refugiaram em conventos, em ermidas, em grutas, longe de tudo e de todos, mas, principalmente, longe do já insuportável barulho dos começos da Idade Média para se proteger das sucessivas hordas de bárbaros que invadiram o império. Mal ou bem, o império romano e a igreja católica, sua potente aliada a partir do século IV, puseram ordem nos barulhos do mundo. Em muitos deles, ao menos.
Pois saibamos que hoje os bárbaros voltaram munidos de outras armas e querem nos destruir pelos ouvidos. Não estão mais ante portas.
Os bárbaros estão no meio de nós. Suas armas são poderosíssimas e nos alcançam onde quer que estejamos, aonde quer que vamos.
O silêncio tornou-se impossível. É um bem inacessível. Ou, pelo menos, o mais raro dos bens.
NOTA DEONÍSIO DA SILVA – ESCRITOR. PROFESSOR. MEMBRO DA ACADEMIA CATARINENSE DE LETRAS, DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA E DA ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA.
Crônica publicada no Instituto da Palavra e na Veja on-line e aqui com a devida autorização do Autor.