Histórias de
línguas
Uma vez, há muitos anos, uma professora de literatura perguntou-me se o inglês era a minha “primeira” língua. Fiquei confuso. Naquela altura, tinha 25 anos e já era um adulto sério, estudante de mestrado em literatura inglesa e americana. No momento de explorar a riqueza dessa literatura, estava certo que dominava aquela que sempre pensei ser a minha língua materna, o inglês. Até ali, nunca tinha pensado que uma outra língua poderia fazer parte da minha história. Quais foram as indicações que essa professora de literatura reparou? O vocabulário? A pronúncia? Nunca o soube, mas das dúvidas nascem, às vezes, descobertas inesperadas….
Que choque imaginar que o idioma que eu falava desde sempre, o inglês, podia conter fragmentos de uma outra língua. Será possível que as minhas palavras soavam um pouco de maneira estranha quando eu falava? Sempre pensei que falava de maneira “normal.” E se fosse verdade, qual seria essa “outra” língua escondida dentro de mim que interferia com a minha língua materna? Talvez fosse o português dos meus antepassados? Talvez não.
Na verdade, não fiquei muito vexado com a pergunta surpreendente da minha professora. Havia muito a fazer. Estava a mergulhar profundamente na fabulosa literatura americana e inglesa e durante muitos anos não voltei a pensar mais na observação da minha professora. Mas, hoje lembro-me.
Dantes, nunca me tinha vindo à ideia que um dia ia querer aprender o português. Quando era criança, quase nunca ouvi falar essa língua que era a dos meus avós paternos e que eles falavam de vez em quando unicamente entre eles ou com alguns velhos amigos. Querendo ser bons cidadãos americanos e falar bem o inglês, era normal para eles se esquecerem rapidamente da sua língua materna. Isso fazia parte desse processo que muitas pessoas tinham enfrentado. No contexto de imigração a que faço referência, talvez fosse melhor assim. Não posso julgar as escolhas que eles fizeram naquela altura, mais gostaria de ver a reação dos meus avós ao me ouvirem hoje falar em português. Nesta aventura de aprendizagem do português, imagino, às vezes, que estou a retomar a caminhada dos emigrantes para recolher o que eles abandonaram.
Mas agora, lembro-me que, quando era criança, só aprendi uma frase em português: Cala boca, cala boca, tu não sabes falar! Quem me ensinou isso! Talvez fosse a piada dum velho tio-avô “Cuidado com esta gente da Madeira!” dizia a minha avó desse homem que tinha mudado o seu nome de Pereira para Perry. Sim, lembro-me agora que o Senhor Perry falava inglês com uma pronúncia um pouco estranha e palavras acentuadas de maneira caótica. Eu pensava que esta frase era uma rima infantil engraçada ou a letra de uma canção para embalar. Corria de um lado para o outro cantando….Cala boca, cala boca tu não sabes… Assim começou a minha experiência de poliglota. Que ironia pensar nesse cala boca, cala boca hoje, no momento em que tento abrir a minha boca e ouvir a língua dos meus antepassados. Talvez tenham dito ao Senhor Pereira para ele calar a boca por causa do seu inglês péssimo e foi por ter vergonha, que ele mudou o seu nome para Perry. Estou a pensar nisso hoje pela primeira vez.
Como a cultura mexicana está muito presente na Califórnia, aprendíamos o espanhol como língua segunda. Agora, no mundo inteiro, o inglês é a língua franca do comércio, da ciência e da tecnologia. Lembro-me ainda do meu avô que dizia orgulhosamente: I speak American! (não o inglês)
Hoje, apesar de não ter aprendido a língua portuguesa em casa, à exceção dessa frase na realidade pouca engraçada, nem de conhecer grande coisa sobre a cultura, tenho um imenso desejo de me familiarizar com elas. Porquê? Foi exatamente isso que me perguntou a Carolina, a neta de uma amiga portuguesa, observando-me com olhos cheios de curiosidade: “Porque é que o Richard quer aprender o português?” Abri a minha boca para tentar explicar-lhe…em português….
Mas as minhas respostas improvisadas não convenceram a Carolina. Ela esperava uma resposta clara, lógica e concreta que ia resolver o enigma do meu projeto. Mas eu não tinha a reposta. Teria gostado de lhe explicar que aprender o português me permitiria descobrir algo sobre a minha própria identidade e que esse “algo” tem a ver com o passado. Também teria gostado de lhe dizer que o passado é composto de experiências verdadeiras e imaginárias. Mas tudo isso era demasiado complicado e as palavras ficaram presas na minha boca. ….Tu não sabes falar….
Porquê? Cada pessoa precisa de encontrar o seu destino, “o caminho com coração” como dizia Don Juan, o sábio na obra de Carlos Casteneda, o escritor místico mexicano. Prefiro pensar que a vida é mais feita dum conjunto de círculos do que de linhas retas. E talvez os círculos dos destinos sejam apenas linhas dobradas que tentam formar um círculo. E se fosse possível ligar o fio do esquecer com o do lembrar? Passo a passo, entro no círculodo meu destino. Será isso a minha história e dança com a língua portuguesa?
Escolhi aprender a língua esquecida dos avós sem objetivo nem necessidade particular. Não estou a desenvolver negócios no Brasil. Não penso comprar uma casa à beira-mar em Portugal. Enfim, não se trata de qualquer motivo pragmático. Cada dia falo um pouco mais, mas falta-me ainda uma reposta concreta e adequada para a Carolina.
Terei resposta para ela um dia? Do que tenho certeza é que línguas e literaturas são bússolas fascinantes e preciosas. Indicam direções. Guiam os navegadores até sonhos e lugares inesperados. Sem elas, ficaria cego e perdido. Nesta viagem, graças à bússola da língua portuguesa, vou entremeando o meu próprio círculo de destino ao dos meus antepassados, o de pertencer e fazer parte de uma história encantadora: a da língua e a das pessoas queridas. A boca aberta.
2017, 2018