Diário de António: Poema épico de um emigrante açoriano sobre a Primeira Guerra Mundial, de António da Silva Melo
Com notas de Katharine F. Baker e Emanuel Melo
Grande guerra. Guerra das guerras. Há um século neste outono – na 11ª hora do 11º dia do 11º mês – o Armistício encerrou o combate na Primeira Guerra Mundial. Um emigrante açoriano que serviu no Exército dos Estados Unidos escrevera um diário de sua vida americana, inclusive o serviço de combate, tudo isso que se transformou num poema épico de 374 quadras (cerca de 1.500 linhas). Mas em 1911 – quase 22 anos após o nascimento em Almagreira, Santa Maria – quando António da Silva Melo chegou à Califórnia, trabalhou inicialmente em fazendas na região de Richmond/San Pablo, no lado leste da Baía de San Francisco. Era inepto na ordenha, que também causava dor excruciante nas mãos, então mudou-se para outro trabalho árduo, por exemplo cortando erva com uma foice, e transportando os porcos à cidade.
1 Encontrei o meu amigo
Num rancho a trabalhar
Metendo vacas num curral
Para as ir ordenhar.
8 Logo no meu princípio
Comecei-me a desgostar
Trabalho de ordenhar vacas
Não me ia acostumar
10 Digam vocês o que quiserem
Vacas não quero ordenhar
Vou dar modo a trabalho
Para num rancho trabalhar
30 Mesmo nessa manhã
Com o patrão eu fui falar
Que me pagasse o que tinha
Que o queria larger.
31 Ele era um laparoso
Ninguém o ouvia falar
Pergunta-me se estava rico
Nao queria mais trabalhar.
Embora o patrão lhe tenha oferecido um aumento de $10 até $35 por mês para continuar, António demitiu-se e dirigiu-se para a casa do seu tio. Foi então morar com um homem do Pico, quem considerou intrometido, por isso saiu para viver sozinho. Nessa altura trabalhou como rebitador na Standard Oil (provavelmente em Richmond). Já a guerra começara na Europa em 1914, mas os Estados Unidos continuavam a manter neutralidade; na verdade, o Presidente Woodrow Wilson venceu a reeleição estreitamente em 1916 sob o lema “Manteve-nos fora da guerra”. Mas logo depois, uns submarinos alemães afundaram sete navios mercantes americanos – e os alemães tentaram clandestinamente incitar o México a invadir os EUA.
Em 6 de abril de 1917, o Congresso americano declarou guerra contra a Alemanha. Dois meses depois, António, com 27 anos, registrou-se na conscrição militar dos EUA. Após quatro meses viajou de comboio até Washington para se apresentar em Camp Lewis, perto de Tacoma. Depois de ser examinado, então vestido como soldado, ele estava estacionado em Camp Kearny (agora Miramar) pertinho de San Diego, onde durante nove meses aprendeu a cavar trincheiras como eram usadas na guerra europeia. Para esse trabalho duro sob o calor, os homens eram alimentados com feijão e pagos $1 por dia.
60 Cuidei que estava bem
Foi quando me veio o mal
Quando veio a notícia
Para me ir registar.
65 Era comer e beber
Três semanas descansei
No dia sete de Outubro
Para soldado caminhei
66 Ás nove horas da noite
O carro de fogo tomei
No dia doze do mês
Ao campo Luís cheguei.
69 A vinte sete de Outubro
Tomei o carro de fogo
Fui para a Califórnia
Para perto de São Diogo
77 No dia dezoito de Julho
D’esse campo fui-me embora
Com as algibeiras todas
Viradas de dentro para fora
Depois de gastar a maioria do salário namorando uma jovem em San Diego, António, sem dinheiro para comprar até mesmo cigarros, e outros soldados viajou de barco para a Inglaterra. Duas semanas depois, partiram para a França a bordo do navio Queen Alexandra, atravessando águas cheias de U-boats alemães. Á chegada, viajaram para o acampamento, às vezes em veículos, outras vezes a pé. Depois de mais três semanas, foram para a frente. António adotou uma atitude fatalista acerca da guerra.
Os homens trabalhavam duro na construção de estradas perto das linhas de frente, para que a artilharia dos EUA pudesse passar. Ficaram de guarda à noite também, mesmo no pior tempo; António escreveu que sempre teve medo. As tropas moviam-se de um local para outro, e estavam perpetuamente sofrendo de frio, encharcadas, cansadas e subnutridas. Eles dormiam em crateras de bombas, mesmo em cima de cadáveres. António ressentia-se de que os cavalos dos oficiais às vezes recebiam acomodações melhores do que os homens alistados. E tinha saudades pela sua igreja em Santa Maria.
78 Caminhei eu para França
À conta de Nosso Senhor
Sessenta e cinco dez reis
Era todo o meu valor
115 Mas com a graça de Deus
Não tive que me queixar
Cinco semanas nesta fronteira
Sem um tiro me tocar
144 Quantas e quantas vezes
Mortos se desenterrava
E mesmo por cima deles
Uma pessoa se deitava.
174 A Senhora do Bom Despacho
Veio-me logo à memória
Como que ouvi uma voz dizer
Deus te leve em boa hora
Após cinco semanas eles saíram para a batalha em veículos blindados. A sorte de António terminou logo que ele experimentou os horrores da guerra diretamente, canhões em chamas ao seu redor. Certa noite viu oito cavalos e cinco homens mortos instantaneamente numa estrada – relatando na última linha da estrofe 222, "Era o inferno". E depois:
224 Isto foi só uma bala
Que me fez arrepiar
Que também não esteve longe
De também a mim matar
225 Estava encostado à barreira
Quando a bala caiu
Que a terra que espalhou
A mim quase me cobriu
242 Estavam bem estragados
Que custava bem a ver
E ainda o fogo estava
Naqueles corpos arder.
245 Era a única coisa
Que estavam sempre a dizer
Quando ouvirem as balas
Tratem de se esconder.
246 Não precisava ninguém
Nesses pontos me mandar
Que eu por minha cabeça
Sabia-me acautelar.
255 Bem me podem acreditar
Que custava bem a ver
Aqueles corpos em pedaços
Ainda com o sangue a correr.
266 Muitas e muitas vezes
Mesmo a mim desejei matar
Coberto de uma miséria
Do mundo me desejei tirar
Os soldados tiveram que ser despiolhados todas as noites, estavam cobertos de lama, e a água era venenosa ao toque, por isso não era útil nem para lavar nem consumir. O gás mostarda alemão queimou-lhe os pulmões, e o cheiro da morte estava por toda a parte. António abençoou a data de 11 de novembro de 1918, quando o Armistício entrou em vigor às 11 horas. E não via o momento de partir para a França. Os soldados viajaram para perto da Bélgica, onde os moradores locais andaram nas ruas gritando “Vivam lá os Americanos!” para os libertadores. Finalmente, em 12 de dezembro os homens atravessaram uma ponte às 21 horas e entraram a Alemanha, onde ficaram durante um mês. Ao chegar no Rio Reno na neve e no frio, António deu graças; o dia seguinte foi de festa, com jantar ao meio-dia.
De volta aos Estados Unidos, agora com 30 anos, António aproveitou a oportunidade como veterano militar para obter acelerada cidadania americana, quase um ano após o Armistício. No entanto, apenas 11 meses depois, voltava de Providence, Rhode Island, a bordo do navio Roma à sua ilha natal de Santa Maria, onde dentro de quatro meses casou com Luisa da Assunção. Tiveram dois filhos: Maria (n. 1922) e José (n. 1927). António da Silva Melo morreu em 1935 com 46 anos.
354 Quando me tirei da França
Eu bem contente figuei
Naquela maldita terra
Anos de vida deixei.
373 Eu em Deus estou fiado
Que de mim tem compaixão
Sou uma criatura humana
Feita de bom coração
374 Isto tudo são histórias
Para o tempo passar
Se não me gabar a mim
Quem é que me há-de gabar
FIM
Katharine F. Baker, tradutora, é natural de Berkeley, Califórnia, EUA, de origem açoriana no lado paterno. Formou-se na Universidade da California-Berkeley, e ganhou um Mestrado na Universidade de Maryland-College Park. Estudou Português na Universidade de Pittsburgh na Pensilvânia.
Emanuel Melo, tradutor e escritor, é natural de Ponta Delgada, São Miguel, Açores, e emigrou, com nove anos, para o Canadá. Reside em Toronto, Ontário, onde formou-se na Universidade de Toronto e trabalhou como administrador no Victoria College da Universidade de Toronto por 28 anos.
Os curadores gostariam de agradecer a:
Ron Braga, neto de António da Silva Melo, por fornecer o texto completo do poema do seu avô, mais o cronograma biográfico de António e umas fotos familiares.
Helen Cunha Kerner, que emigrou como criancinha de Almagreira, Santa Maria – cujo pai era amigo do pai de Ron Braga em Fort Bragg, Califórnia – por chamar o a nossa atenção para o poema de António.
Francisco Cota Fagundes, Ph.D., Professor Emérito de Português, Universidade de Massachusetts Amherst, por aperfeiçoar o texto português.
Wikimedia Commons, pela imagem de cartão postal.
Uma versão abreviada do trabalho – com somente nove quadras – foi originalmente publicado na página “Maré Cheia” da Tribuna Portuguesa de 15 de Novembro de 2018.