“Diabo me leve quem pôs bonita a minha terra!”
Manuel Bandeira
Em visita à ilha Terceira, passeio-me pelas ruas da Praia da Vitória e recordo o tempo em que ela era vila e eu… adolescente.
Recorro à minha memória e lembro-me que à Praia se chegava por duas vias: pelas freguesias ou pela Recta da Achada. Eu morava em Angra do Heroísmo e sempre que ia à Praia (uma hora de camioneta da E.V.T. para lá chegar) era como se partisse em busca do pote de ouro para lá do arco-íris…
A Praia era a sua ampla baía, o seu areal branco e vasto, a rebentação das marés… A praia da Praia era também a “praia dos americanos”, a praia dos oficiais” e a “praia os sargentos”, em cujo bar bebi a minha primeira coca-cola…
A Praia era o Forte de Santa Catarina, o Largo Francisco Ornelas da Câmara, a Rua de Jesus, o Correio, o edifício seiscentista dos Paços do Concelho, a Torre do Relógio, a Cadeia… Ainda sou do tempo em que, por detrás das grades dos grandes janelões, os presos (ainda não se dizia reclusos) costumavam pedir ajuda aos passantes, mandar recados aos seus ou tagarelar longamente com quem lhes aviasse a conversa.
A Praia era Vitorino Nemésio (ontem como hoje, mais conhecido do que lido), a casa das suas tias, a Igreja da Misericórdia, a Igreja Matriz e seus belíssimos portais manuelinos.
A Praia era o rosto das suas habitações e ruas, as suas vendas, mercearias e cafés (alguns disfarçados de “snacks” e “pubs”), as suas lascivas concubinas (fazendo olhinhos bonitos aos americanos da Base), o seu mercado de boa fruta, os seus pequenos comerciantes de fazenda, de ferragens e de utilidades domésticas… (Muito antes da globalização chegar até nós, já lá havia uma “Loja do Chinês”).
A Praia era os seus chafarizes, ermidas e impérios. E era o “John´s beach”, a “Praia Azul”, a “Riviera”, mas também o Paul, o Jardim Público, o monumento a José Silvestre Ribeiro, o Posto da Guarda Fiscal, as Finanças, o Registo Civil (de que foi Ajudante, durante largos anos, o meu saudoso pai Elmiro).
A Praia era a sua Filarmónica União Praiense (nela o menino Nemésio havia tocado tarola, sendo o seu pai o segundo regente), os seus clubes (“Os Brancos” e “Os Vermelhos”) e os seus bailes brilhantemente abrilhantados pelos “Sombras”… E eram as tardes soalheiras e os deliciosos banhos de Verão, a tourada à corda no areal, os militares americanos, de câmara fotográfica ao pescoço, a levarem valentes cornadas…
A Praia já não era mais o “pocinho de areia” da velha quadra popular – transformara-se na fisionomia do seu porto, com especial destaque para os pipe-lines, condutores de carburantes para o aeroporto das Lajes, a partir de um cais de combustíveis em três linhas de descarga….
Os grandes aviões norte-americanos sobrevoavam o burgo. Os praienses de há muito se haviam habituado aos roncos da aviação – não se importavam nem se importunavam com a trepidação das potentíssimas aeronaves. Aliás, dizia-se na altura que, quem estando na Praia se pusesse a olhar para cima para ver aviões, só poderia ser “pessoa da cidade” (Angra)…
Por sua vez, os angrenses, em irónico desprezo, arreliavam os praienses chamando-lhes “os praianos”. E tinham sempre um remoque na ponta da língua: “Praia?… Sol alto e dinheiro na algibeira”… A rivalidadezinha bairrista entre Angra e Praia ainda estava para durar…
Já que me deu para o saudosismo que aqui fique esta lembrança: meio século depois, eu não consigo esquecer as longas caminhadas que fazia pelo areal da Praia, junto à rebentação da maré.
P.S. Não deveriam estar expostas, na Casa de Vitorino Nemésio, todas as (primeiras) edições das suas obras?