Nostálgico, um amigo me desafia a citar “coisas boas e puras”, ainda sobreviventes nessa emporcalhada atmosfera dos tempos que correm.
De repente, assim “num átimo”, lembro-me logo de quatro coisas boas que ainda sobrevivem. Uma floricultura em plena primavera; uma criança e seu baldinho de praia; um matuto conduzindo o seu curió de gaiola, “agorinha mesmo”; e as vendas de esquina, os antigos “empórios”, que ainda fiam “conta de caderno”.
Quando vejo flores e belos arranjos na vitrine de uma floricultura, lembro-me de um verso de Paul Élouard, segundo o qual “o flerte e as flores são a aquarela do amor”. Se há flores sendo embaladas, há alguém tentando seduzir e outro alguém disposto a ser seduzido.
Compre flores, caro leitor! – e presenteie sua amada com rosas encarnadas. Não despreze sequer os copos de leite, mesmo com sua fama de flor de cemitério. Tudo o que vem da terra e da natureza é belo, é sublime.
Um baldinho, uma criança, uma praia. Cena que se repetirá no próximo verão – com ou sem Temer, com o país em crise ou saindo dela.
Areia molhada é irresistível argamassa, pura magia e tentação para pequenos engenheiros de uma alma ainda em formação. A cena costuma me remeter à tenra infância, e me vejo a bordo de um calçãozinho atoalhado, munido de suspensórios, na forma de duas tirinhas do mesmo tecido, abraçadas ao meu pescoço. Apesar da bizarra indumentária, construía meus castelos de areia com a teimosia de um Quixote à beira-mar.
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Já viram a beleza que há num Mané levando a passeio o seu curió chilreador? Nesse amor conjugal e cativo, gaiola não é masmorra, prisão, jaula ou pelourinho. É só um viveiro móvel, aviário ambulante, berço em cujo guidom está ninguém menos que “papai”. O dono do curió atira também seus beijos e pipilos, como se ele próprio fosse um bicho de pena.
E haverá crédito mais puro, mais limpo e asseado do que o do “Seu” Zé da Venda, em cuja “caderneta” se inscrevem os créditos abertos aos fregueses pobres, porém honestos?
Se os bigodes estão em baixa na triste República de hoje, em cujos fios já não se pode confiar, um freguês de “caderneta” ainda é um ser humano decente e amável.
Haverá maior prova de amor ao próximo do que a crença em promitentes pagadores que compram “no fiado”, e honram o pagamento? Haverá nesta “vizinhança”, uma maior prova de fé?
A fé depositada em brasileiros que vão até a esquina comprar um tablete de margarina, um quilo de açúcar ou 250 gramas de colorau?