A Califórnia, e toda a sua mítica, tem sido espaço preferido por muitos emigrantes portugueses, a maioria dos Açores, para refazerem as suas vidas em terras americanas. Já cá estávamos antes da Califórnia fazer parte dos Estados Unidos. Viemos, como se sabe, em barcos baleeiros, depois cruzámos os mares, e o continente americano, para participarmos na corrida ao ouro e nas sucessivas indústrias que tornaram este estado num dos mais consequentes da união americana. E todos temos uma história. Essas histórias, particularmente da emigração para o Vale de San Joaquin, começam, em breve, a ser gravadas e arquivadas. É que, como escreveu Paul Thompson em 1998: “a história oral devolve a história às pessoas, nas suas próprias palavras. E ao dar-lhes um passado, ajuda-as também a caminhar para um futuro construído por elas próprias.” Todos os emigrantes e luso-descendentes têm a sua história. Essas histórias construíram a Califórnia e é tempo de as registar. É tempo de dar continuidade ao trabalho pioneiro de Eduardo Mayone Dias, Donald Warrin e outros.
O projeto que a Universidade Estadual da Califórnia em Fresno, através do Instituto Português Além-Fronteiras (PBBI) com as faculdades de ciências sociais e a de artes e humanidades está a iniciar, construirá na biblioteca desta universidade um arquivo das histórias orais dos emigrantes portugueses e seus descendentes para esta região da Califórnia. O Vale de San Joaquin, é a região da Califórnia com o maior número de emigrantes portugueses (maioritariamente açorianos) e seus descendentes. É a região com o maior número de alunos a aprenderem a língua portuguesa, quer no ensino comunitário, quer no ensino primário e secundário. É a região com o maior número de celebrações portuguesas e onde se realizam as maiores festas portuguesas deste estado.
O corredor 99, a legendária estrada que liga o norte ao sul da Califórnia e que atravessa este fértil Vale, fruto de uma excelente antologia literária intitulada, Highway 99: A Literary Journey Through California’s Great Central Valley, será o entrelaço para as histórias que se recolherão ao longo dos próximos anos. O ambicioso projeto, que tem duas vertentes: uma de recolha em áudio e outro em vídeo e registará as histórias dos emigrantes que um dia deixaram as suas ilhas no meio do atlântico e dos seus rebentos que apesar de terem nascido nos Estados Unidos continuam ligados à cultura dos seus antepassados. Quer um grupo, quer o outro têm contribuído para a construção desta região. Omitidos que temos sido dos compêndios oficiais da história deste vale e deste estado, o projeto agora em movimento, graças a um subsídio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), ao entusiasmo e apoio do presidente desta Universidade Joseph Castro, cuja esposa Mary Castro tem raízes açorianas (da ilha Terceira) e à liderança dos reitores, dos diretores de departamento e professores , das diversas faculdades, que trabalham com o Portuguese Beyond Borders Institute (PBBI), criará a possibilidade de apesar termos estado fora ou nas margens da história oficial, usufruiremos o nosso espaço e contaremos as nossas narrativas. Catalogadas num centro universitário, os anais dos emigrantes e seus descendentes ficarão para a posteridade e para os estudiosos do futuro, quer a curto prazo, quer os que possivelmente nos estudarão daqui a 50 ou 100 anos.
Mais, as histórias orais, e este projeto que agora dá os seus primeiros passos, numa comunidade que tem ficado esquecida, é ainda mais uma forma de se celebrar a identidade açoriana e portuguesa em terras californianas. É que tal como descreve o livro editado há anos por Michael Marie Le Vem, cria-se, com o registo das histórias orais, um espaço de revisitação e de intervenção no processo histórico de um povo e de uma comunidade, porque “as entrevistas permitem ao entrevistado uma reformulação de sua identidade, na medida em que ele se vê perante o outro. Ele percebe-se criador a partir do momento em que se dá conta que, mesmo minimamente, transformou e transforma o mundo (talvez até sem ter a consciência disso), questionando elementos da vida social. Então ele interrompe o dia a dia e reflete sobre sua vida — e este momento é acirrado pelas entrevistas, ocorrendo com frequência – que o entrevistado se vê como um ator social e criador da história.”
Produzir, através deste projeto, uma ligação comunidade/universidade, uma ligação entre as várias gerações que compõem a comunidade da Califórnia, particularmente, mas não só a do Vale de San Joaquin. É impreterível, porque como nos explica José Carlos Meihy no seu Manual da História Oral: “a presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, a história oral não só oferece uma mudança no conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido social à vida de depoentes e leitores, que passam a entender a sequência histórica e se sentir parte do contexto em que vivem.” Daí que através do PBBI serão entrevistados uma amalgama de homens e mulheres, de várias gerações, emigrantes e descendentes, novos e idosos, ricos e pobres, académicos e empresários, enfim, uma amalgama de gente que queira contar a sua história. Com esses registos far-se-á a narrativa dos portugueses neste Vale e neste Estado.
A comunidade da Califórnia, tal como outras comunidades da nossa Diáspora, vive a sua metamorfose, a transformação natural que todas as comunidades emigrantes têm vivido no mundo estadunidense. Registar os contributos daqueles que um dia deixaram a sua terra e dos que neste multiculturalíssimo estado ainda se identificam como sendo de origem portuguesa e açoriana, é essencial, para a comunidade, para Portugal, os Açores e a Madeira, e para o mundo americano. No seu magnífico poema Êxodo, Pedro da Silveira escreveu: “e foste tripulante de ferry-boats/ carregador dos cais/abriste estradas e caminhos-de-ferro/foste madreireiro/ovelheiro/trabalhaste nos ranchos…/Tornaste a terra brava um paraíso.” Na realidade a história da nossa emigração, e das sucessivas gerações de luso-descendentes, está repleta de homens e mulheres que, na maioria dos casos num completo anonimato, contribuíram para esta região e este estado. Deram tudo, como verseja Pedro da Silveira: “por essa terra que não era tua/deste generoso o teu sangue./E deste-lhe, ó semente dos mundos/os teus filhos.”
É tempo de se registar essas histórias, quer dos emigrantes, quer, com as sucessivas gerações, dos filhos, dos netos e dos bisnetos daqueles que, parafraseando de novo Pedro da Silveira: com o seu suor fertilizaram, e ainda fertilizam, o San Joaquin Valley. O registo das histórias orais de emigrantes, e daqueles que ainda se identificam como sendo de origem portuguesa e açoriana, não só permitirá o arquivo dos nossos contributos, das nossas tribulações e desafios, mas, pela natureza das conversas que se encetará, simultaneamente, revitalizará o espírito açoriano e português em terras californianas. É que todos temos uma história e coletivamente essa é a narrativa do nosso povo.
O Autor, DINIZ BORGES, é terceirense. Vive em Tulare,Califórnia. Uma das vozes mais relevantes da diáspora açoriana na América em contínua luta pela salvaguarda do patrimônio cultural luso levado pelos emigrantes em sua "bagagem" e ainda sobrevivente e partilhado por gerações de lusos descendentes.
Professor, Escritor e Cônsul Honorário de Portugal na Califórnia (USA)
Coordena o excelente Suplemento Lierário "Maré Cheia" do jornal Tribuna Portuguesa (Modesto,Ca)