Há meses que ando a rever papeis, nunca com a frequência desejada, mas com o intuito de organizar, um destes dias, um livrinho com as minhas crónicas sobre as comunidades, a nossa diáspora, particularmente, no estado da Califórnia, a minha casa durante quase cinco décadas. E o título é precisamente o que uso neste textinho: à Sombra da Saudade, com o subtítulo, vivências e reflexões portuguesas na Califórnia. É que a minha presença neste estado, o meu envolvimento na comunidade deste a idade dos 18 anos, os meus anos servindo ou refletindo o nosso movimento associativo, a minha presença no ensino americano, com o ensino da língua portuguesa, o meu trabalho no conselho das comunidades, a minha presença na comunicação social, tudo isto e algo mais, ensinou-me, que mesmo com as novas gerações, muito do que fazemos no mundo português e mais concretamente o de cultura açoriana, em terras californianas, é um bocado à sombra da saudade. E o que se faz, esporadicamente, que sacuda com essa saudadesinha é, quase sempre, incompreendido pela comunidade. A saudade, conceito que apesar de ser, compreensivelmente, desentendido, pelas novas gerações, pesa, muito mesmo naqueles mais novos, e há por aí alguns jovens, que ainda vivem e até dirigem as comunidades, nos quais o desconhecido conceito pesa duplamente: vivem-no sem o perceberem. Mais, quer nos novos quer nos mais idosos nota-se um certo cansaço, que permite a manutenção na tal sombra, porque como escreveu algures o pensador Nietzsche : “quando estamos cansados, somos atacados por ideias que conquistamos há muito tempo”.
É sabido que a comunidade de origem portuguesa na Califórnia, maioritariamente com raízes no arquipélago dos Açores, é uma comunidade secular. Aqui vivem emigrantes portugueses, mesmo antes de haver estado, como documentou o Professor Doutor Eduardo Mayone Dias, a quem devemos a história da presença portuguesa neste estado. Relembramos que tivemos uma grande onda emigratória nas últimas duas décadas do século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. A segunda onda registou-se, como se sabe, em torno do Azorean Refugee Act e do Family Reunification Act. Duas leis que hoje são questionadas pelos puderes americanos, o conceito de albergar refugiados e a reunificação familiar, ambas desprezadas por jovens luso-descendentes que apesar de estarem dentro do nosso movimento associativo, desconhecem as suas raízes emigratórias, a tal sombra que a saudade provoca, permitindo que continuemos apenas com as tradições mais populares, quase sempre ligadas ao copo e às bifanas.
Se olharmos um pouco pela vida da comunidade de origem portuguesa (açoriana, como se disse) na Califórnia, espelhadas nas páginas do jornal português deste estado, o Tribuna Portuguesa, e nas redes sociais, apercebemo-nos, independentemente onde estejamos, que a comunidade gosta da sua festa, que gastamos, coletivamente e individualmente, muito tempo, energia e dinheiro nas nossas festas. Que as mesmas reinam a vida comunitária. Feitas à sombra da eterna saudade, e orquestradas, mais ou menos com os mesmos trâmites de há 25 ou 30 anos, mesmo com as queixas que proveem de todas as vertentes, elas repetem-se, de ano para ano, sempre com menos gente e numa comunidade perfeitamente integrada, persistimos em que elas sejam segregadas do mundo californiano, salvo raras exceções, porque também as há. E passamos este peculiar filamento às novas gerações: basta ires numa festa para seres português.
Se a festa nos faz bem, se é bom tomarmos um copo e comermos uns tremoços com amigos e familiares, não é menos bom e diria extremamente importante gastarmos algum tempo, energia e dinheiro em refletir a comunidade e a presença portuguesa neste colossal estado da Califórnia, além de próxima ou da última festa. Seria bom que os nossos jovens luso-descendentes não ficassem pela cultura que Salazar tentou implantar no nosso país, circunscrita aos denominados três Fs – Fado, Fátima e Futebol. A cultura portuguesa tem uma rica tradição que vai além do populucho. Em Portugal existe, particularmente, no momento atual uma amalgama de criadores na música (mesmo no fado), no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na literatura. Essa cultura, que os jovens luso-descendentes vivem no mundo americano, particularmente quando entram no ensino superior, é raramente conhecida pelas segundas e sucessivas gerações, que ainda estão, os que pela comunidade ficam, muito ligados às tradições mais rurais, meramente repetitivas, sem espaço criativo e com a agravante de ficarem limitadas ao espaço luso-descendente. É que mesmo o mais popular fica à sombra da saudade, sem ter direito a nutrir o sol e a frescura do mainstream americano, sem a possibilidade da respiração saudável que advém de conviver com outras culturas, com outros usos e costumes. Mesmo as tradições mais populares ficam abafadíssimas e vítimas de um mofo que até já nem faz parte das modernas sacristias.
Há anos que reflito as vivências portuguesas neste estado plantado à beira do Pacifico. Desde os meus tempos na rádio portuguesa que proponho uma comunidade mais aberta, mais interligada ao mundo americano, mais ligada ao Portugal moderno, com um outro descerramento do mundo lusófono, partilhando a nossa cultura, a nossa língua, a nossa gastronomia e até mesmo os usos e costumes mais populares, que esses sejam vividos e partilhados com o mundo americano. Assusta-me que a nível de calendário social, estejamos ainda a fazer para nós o que é nosso e depois fazemos algo americano, em nome da comunidade portuguesa, para todos os grupos étnicos que compõem este mosaico humano. Nas novas comunidades que despontam, estas vivências não terão qualquer repercussão e em alguns casos são danificadoras e diria, perversas. Com a atual circunstância estamos condenados ao que tudo e todos se queixam, a fossilização da cultura portuguesa no estado da Califórnia e cada vez menos gente nos eventos comunitários. É bom relembrarmos o que escreveu Katherine Anne Porter: “o passado nunca está no lugar onde pensas que o deixaste.”
E no meio de toda esta sombra, com pouquíssimas entradas de sol, Portugal e a região Autónoma dos Açores têm uma palavra, quer através das instâncias governamentais, quer nos institutos privados. Os apoios, os incentivos, as promoções, devem estar focadas não só nas novas gerações, mas nas novas ideias, nos mecanismos que levem a cultura a outros patamares, nos projetos que vão além da tradicional romaria e em elementos que incorporam o mundo americano e a possibilidade de se chegar aos 400 mil californianos que se identificam como sendo de origem portuguesa e não apenas aos mesmo 5 mil que vão a todas as festas. E Portugal e os Açores têm de ter a consciência que, infelizmente, em muitas das nossas comunidades da Califórnia, nem sempre a juventude é sinónimo de renascimento e de ideias abertas e progressivas.
À sombra da saudade será título de um livrinho com as reflexões que tenho vindo a fazer sobre as nossas comunidades nos jornais de língua portuguesa que colaboro, e de textos que foram apresentados em alocuções e acontecimentos comunitários. Não são textos que pactuem estarmos à sombra e debaixo dessa saudade, pelo contrário, quase todos são análises e opiniões baseadas na comunidade que fomos e que precisamos ser. É tempo de espreitarmos além da sombra, de espreguiçarmos os braços além da saudade, de irmos junto dos 400 mil californianos que se identificam como portugueses, de estarmos inteiros, como portugueses e luso-americanos do século XXI, de corpo e alma e sem amarras ao passado, no mundo americano.