Íntimo Sul de Arlinda Mártires
(texto de apresentação)
Por Dora Nunes Gago
Íntimo Sul consubstancia-se numa viagem pela memória, num percurso que entrecruza a profundidade do ser e a imensidão pura de um Alentejo resgatado às garras do tempo e às vicissitudes do presente, marcadas pelo consumismo, pelo imediatismo e por uma fútil ditadura das aparências.
Como contraponto a esse vazio que tanto preenche os quotidianos da actualidade surge-nos, neste livro, um outro tempo vestido com a genuinidade de um passado simultaneamente tão próximo e tão distante.
Ao longo das dez partes que constituem o livro, a poesia de Arlinda Mártires e os desenhos de Ana Rodrigues não apenas dialogam entre si, mas complementam-se numa plena comunhão interartes.
Primeiramente, introduzida pela epígrafe de Fernando Pessoa, a ceifeira “cinge o feixe de trigo loiro/ como quem abraça um filho”. Poetizada em seis momentos, a ceifa converte-se no acto primordial de embalar o filho.
O cavador, por seu turno, é introduzido pela epígrafe formada por versos de uma conhecida cantiga alentejana, as mãos calejadas fundem-se ao cabo da enxada cuja lâmina “rasga o dorso da terra/ crestado/ de soalheiras” .
Também o sobreiro adquire estatuto de personagem, o “quercus Suber”, personificado, erguendo aos céus “os braços descarnados”, iluminado pelos versos do poema “livre” de Carlos Oliveira: “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
A voz cristalina das mondadeiras é anunciada também pelos versos de uma moda alentejana, quando o canto era um lenitivo para atenuar as agruras do trabalho árduo, o mesmo sucedendo com as lavadeiras
A bica assume-se simultaneamente como fonte de vida, onde se abastece a água e como ponto de convívio aliando o “vozerio” à água alegre que “gargalha “ juntamente com o mulherio, caiando “moços nas esquinas”, numa fusão de sensações irmanadas pela mesma alegria, que irá, a seguir, contrastar com o reino de silêncio e solidão do pastor, que apenas os guizos e os balidos permitem transgredir.
As romarias são anunciadas pelos versos de uma cantiga de amigo, remetendo para um passado remoto inscrito na tradição literária. Esta parte encerra a evocação de um tempo primordial, uma “idade do ouro” resgatada pela memória, marcada pelo cheiro da flor de laranjeira, que funciona como um arquivo do efémero, perenizado através da escrita.
E a décima e última parte, intitulada “Verão” é introduzida pelos versos de Florbela Espanca, evocando as sensações intensas e intemporais das noites quentes do Alentejo, em que se “animam os degraus da porta”, marcadas pelos ecos do cante na taberna, pelas vozes quentes “de noite e de vinho”, mescladas com o cricrilar dos grilos e das cigarras, culminando com a imagem do luar de Agosto possuindo a planície despida de sombras.
É, assim, a profunda e densa humanização de um Alentejo esquecido e escamoteado pela ganga de uma sociedade globalizada que habita estes poemas. Uma poesia, onde tal como refere António João Valério no texto de abertura “a palavra liberta do adorno, revela a emoção do momento, surpreende na relação com a natureza, descobre a alma da poeta; conjura as cantigas populares e a poética medieval, mote para acordes evocativos de nostalgias e imagética idílica de uma idade de oiro”.
Em suma, poesia pura que contém uma condensação de sentidos e uma notável riqueza imagética, onde se ouve, respira e sente o Alentejo, as suas gentes, a sua paisagem “com gente”, inscrita agora além -tempo através destes versos, reveladores do conhecimento do que a filósofa australiana Val Plumwood designou por a “linguagem da terra” (2002: 231) e das vozes ancestrais nela gravadas, numa viagem rumo ao mais íntimo do sul, às profundezas das raízes, onde a poesia nasce.
Íntimo Sul de Arlinda Mártires. Ed. Câmara Municipal de Alvito, 2019
Ao longo das dez partes que constituem o livro, a poesia de Arlinda Mártires e os desenhos de Ana Rodrigues não apenas dialogam entre si, mas complementam-se numa plena comunhão interartes.
Primeiramente, introduzida pela epígrafe de Fernando Pessoa, a ceifeira “cinge o feixe de trigo loiro/ como quem abraça um filho”. Poetizada em seis momentos, a ceifa converte-se no acto primordial de embalar o filho.
O cavador, por seu turno, é introduzido pela epígrafe formada por versos de uma conhecida cantiga alentejana, as mãos calejadas fundem-se ao cabo da enxada cuja lâmina “rasga o dorso da terra/ crestado/ de soalheiras” .
Também o sobreiro adquire estatuto de personagem, o “quercus Suber”, personificado, erguendo aos céus “os braços descarnados”, iluminado pelos versos do poema “livre” de Carlos Oliveira: “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
A voz cristalina das mondadeiras é anunciada também pelos versos de uma moda alentejana, quando o canto era um lenitivo para atenuar as agruras do trabalho árduo, o mesmo sucedendo com as lavadeiras
A bica assume-se simultaneamente como fonte de vida, onde se abastece a água e como ponto de convívio aliando o “vozerio” à água alegre que “gargalha “ juntamente com o mulherio, caiando “moços nas esquinas”, numa fusão de sensações irmanadas pela mesma alegria, que irá, a seguir, contrastar com o reino de silêncio e solidão do pastor, que apenas os guizos e os balidos permitem transgredir.
As romarias são anunciadas pelos versos de uma cantiga de amigo, remetendo para um passado remoto inscrito na tradição literária. Esta parte encerra a evocação de um tempo primordial, uma “idade do ouro” resgatada pela memória, marcada pelo cheiro da flor de laranjeira, que funciona como um arquivo do efémero, perenizado através da escrita.
E a décima e última parte, intitulada “Verão” é introduzida pelos versos de Florbela Espanca, evocando as sensações intensas e intemporais das noites quentes do Alentejo, em que se “animam os degraus da porta”, marcadas pelos ecos do cante na taberna, pelas vozes quentes “de noite e de vinho”, mescladas com o cricrilar dos grilos e das cigarras, culminando com a imagem do luar de Agosto possuindo a planície despida de sombras.
É, assim, a profunda e densa humanização de um Alentejo esquecido e escamoteado pela ganga de uma sociedade globalizada que habita estes poemas. Uma poesia, onde tal como refere António João Valério no texto de abertura “a palavra liberta do adorno, revela a emoção do momento, surpreende na relação com a natureza, descobre a alma da poeta; conjura as cantigas populares e a poética medieval, mote para acordes evocativos de nostalgias e imagética idílica de uma idade de oiro”.
Em suma, poesia pura que contém uma condensação de sentidos e uma notável riqueza imagética, onde se ouve, respira e sente o Alentejo, as suas gentes, a sua paisagem “com gente”, inscrita agora além -tempo através destes versos, reveladores do conhecimento do que a filósofa australiana Val Plumwood designou por a “linguagem da terra” (2002: 231) e das vozes ancestrais nela gravadas, numa viagem rumo ao mais íntimo do sul, às profundezas das raízes, onde a poesia nasce.
Íntimo Sul de Arlinda Mártires. Ed. Câmara Municipal de Alvito, 2019
Dora Nunes Gago
Professora Associada de Literatura, Universidade de Macau