Comprámos a nossa casa da Costa em 2000, num regresso de uma viagem à Irlanda e à Isle of Man, onde Adelaide tinha ido fazer uma conferência sobre literatura açoriana num congresso internacional. Tínhamos conhecido há pouco tempo a crítica e ensaísta lisboeta, Teresa Martins Marques, especializada na obra de José Rodrigues Miguéis (e responsável pela organização do espólio literário de David-Mourão Ferreira), leitora atenta dalguma literatura açoriana. Ela havia oferecido um dos seus apartamentos da Costa para a nossa breve estadia. Nessa manhã de Verão quando lá acordámos, com o céu de um azul brilhante, sob uma intensa luz solarenga, que tudo coloria e iluminava à sua volta, perguntei à Teresa logo ao almoço se ela não queria vender esse seu outro apartamento. Ela riu-se, disse que não, mas que nos ajudava a procurar outro nas redondezas, era tudo muito fácil. Nos nossos primeiros passeios a pé, à beira mar e pela vila, apercebi-me euforicamente do que me fazia gostar do lugar: lembrava nalguns aspectos a minha Califórnia, tanto em geografia como em estilo de vida, relaxada e tolerante. Nas hortas que a circundam, vi algo ainda mais surpreendente: fizeram-me lembrar de imediato a Monterey de John Steinbeck em Tortilla Flat, as suas casas espalhadas entre campo e cidade pareciam-me ter saído directamente da capa estilizada de uma das edições de algibeira desse romance, que eu e outros líamos especialmente por causa da personagem luso-americana, Big Joe Portagee. Para além do mais, a Costa vivia principalmente do turismo, comércio e da pesca, com algumas áreas de trabalho na terra. Desde o início que sempre encontramos aqui a mais exímia educação entre todas as pessoas, e depressa nos sentimos em casa. Hoje faço na Costa o que sempre fiz na Califórnia e em S. Miguel: passeio-me, leio os jornais e livros nos cafés e nas esplanadas da minha preferência, sendo já reconhecido por muitos dos empregados e proprietários destes e de outros estabelecimentos. Que os preconceitos dalguns lisboetas e açorianos "exilados" fossem, pensei eu desde o início, para o inferno. Nem precisaríamos de carro aqui: estamos a minutos da outra margem, ou como pensam alguns lá, do centro do mundo. O gosto com que montámos a nossa casa aqui depressa a transformaria de casa de férias para um outro verdadeiro lar, permitindo-nos cimentar ao longo do tempo amizades inabaláveis, viver um outro Portugal, agora para nós, mais completo, mais expansivo, mais abertamente emotivo. Adelaide e eu comentamos muitas vezes que, nas nossas andanças por estas e outras geografias, nunca tínhamos conhecido esse sentimento de lar, de pertença por direito histórico e de sangue, como o sentimentos nos Açores e no Continente, nunca tínhamos vivido tanto tempo nas mesmas casas, sem as mudanças que tanto nos desestabilizam na América, e nas próprias ilhas, as ilhas de um outro tempo em que a vida era sempre adiada, nos anos da emigração. Em vinte e sete anos de América, o tempo máximo que vivi na mesma casa foi de pouco mais de sete anos, enquanto estive casado com a mãe da minha filha. Adelaide andou sempre de casa em casa dos irmãos na América. Por vezes deitado na praia da Costa, vejo a SATA passar por cima, fazendo-se à Portela. Lembra-me logo quem sou, e fico feliz sabendo que temos o melhor do mundo português: ilhas, Continente, a Diáspora, que um dia foi o espaço da nossa salvação e mundos abertos.
Foi neste contexto que a Adelaide publicou o Sorriso. A avalanche de apreciações foram tão rápidas e consistentes, que deixaram de fora os que possivelmente teriam gostado de ver o seu afundamento, por ajuste de contas comigo ou com a própria autora. Quando desespero no mundo açoriano, terei sempre este facto em mente, terei sempre no coração os nomes que por toda a parte não tardaram em dizer o que sentiam e pensavam ante o romance da Adelaide. Tenho razões para dizer o que digo e sentir o que sinto. Pouco tempo depois (a fins de Outubro de 2005), Adelaide e eu fomos ao Brasil convidados por colegas e amigos que em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul (a professora e escritora Lélia Pereira da Silva Nunes e o romancista Luiz António de Assis Brasil) organizaram o primeiro encontro de escritores açorianos e brasileiros ligados à nossa ancestralidade, por sangue ou afinidades culturais, que intitularam Travessias. Mal tínhamos chegado ao Brasil (era a primeira vez que lá íamos, apesar de convites anteriores), e já alguns telefonemas de amigos advertiam para certa Imprensa açoriana e alguém que falava em entrevista sobre a literatura açoriana e, inevitavelmente, claro, sobre Adelaide e Vamberto, na linguagem do costume, e que a seu tempo e noutro contexto terá a minha resposta. Os colegas brasileiros em Santa Catarina já me tinham convidado a mim e ao Urbano Bettencourt algumas duas vezes, mas por questões pessoais ou profissionais não pudemos aceitar esses primeiros convites, dizendo eles do Brasil que era importante uma presença dos ensaístas e teóricos da literatura açoriana, pois alguns poetas e ficcionistas já lá tinham estado várias vezes, assim como alguns outros professores universitários pouco "inclinados" para esses assuntos ou temas. Desta vez, e depois dos conselhos de alguns amigos e colegas, tive de aceitar, pois seria indelicado continuar a dizer não a quem tanto do outro lado do mar faz pela cultura e literatura açorianas, nomeadamente Lélia Nunes, em Santa Catarina, e Assis Brasil, que na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul desde há muito desenvolve um dos maiores programas de pós-graduação, cuja centralidade foi sempre a cultura e literatura dos Açores, a universidade que mais teses de mestrado e doutoramento tem nesta área dos nossos estudos, sendo ele ainda autor de um dos livros fundamentais sobre a literatura açoriana do pós-25 Abril, Escritos Açorianos: A Viagem de Retorno. Por todas as razões do seu passado profissional, intelectual e literário, e tendo acabado de publicar o Sorriso, que era já objecto de leitura e estudo entre alguns alunos na PUC, naturalmente também convidaram a Adelaide.
Na PUC, após a apresentação de várias comunicações de açorianos e brasileiros acerca da literatura açoriana e de todo o nosso sistema literário, houve uma sessão entre nós e alguns alunos de pós-graduação que estavam a escrever teses nesta área, alunos orientados por Assis Brasil. Perguntaram a uma dessas alunas, Fernanda Rodrigues Garcia, que lugares gostaria de visitar nos Açores quando e se lá fosse um dia. Não hesitou um segundo, e para espanto de nós todos respondeu: a Achadinha, exactamente porque tinha acabado de ler Sorriso por Dentro da Noite, e sabia que essa era a freguesia aí ficcionada sob o nome de S. Bento! Seguiu-se a contextualização do romance da Adelaide no panorama da nossa literatura, especialmente a que tinha sido escrita por outras mulheres de várias gerações. Atrevo-me a dizer que poucos no nosso próprio arquipélago saberiam falar sobre estes temas com tanto e tão profundo conhecimento.
Rui Bettencourt, Director da Juventude, Emprego e Formação Profissional do Governo dos Açores, que se tinha deslocado ao Brasil connosco em representação do Presidente Carlos César e de Alzira Silva, Directora do Gabinete das Comunidades, disse-me a certa altura que nunca tinha visto nada de igual no próprio arquipélago, tanto conhecimento e dedicação à nossa História e Cultura! Por que não fazíamos o mesmo cá dentro, perguntava-nos perplexo. Por mim, respondi-lhe: porque é difícil ter um debate sobre tudo isto nos Açores sem acordarmos no dia a seguir e ver o nosso nome na lama, ou então as insinuações de toda a natureza, a negação da própria existência da nossa literatura e cultura, a inutilidade do nosso trabalho. Poucos escritores como os açorianos têm vivido quase por completo nas margens e à margem da sua própria sociedade, trabalhando tão afincadamente sem qualquer compensação financeira, e sempre tão desvalorizados dentro da sua própria casa comum. Poucos nos lêem, sem no entanto deixarem, por vezes, de dissertar sobre este ou aquele escritor açoriano, formarem opiniões "firmes", tendo como único fundamento o "ouvi dizer que", ou os seus próprios preconceitos culturais. Um dia, numa entrevista que publiquei no Diário de Notícias, o falecido escritor José Martins Garcia disse que a sociedade açoriana ainda não estava preparada para se ver transfigurada na literatura. Que o que queria e gostava era de textos glorificantes da sua Natureza e da sua própria "bondade". Entretanto, desde Saudades da Terra, do século XVI, são esses mesmos escritores que até aos nossos dias criaram os nossos arquivos criativos, desenvolvendo e cimentando a nossa própria identidade, mantendo viva a nossa memória colectiva como povo autónomo e livre, e, hoje mais do que nunca, oferecem todos os dias as linguagens que o Poder utiliza, e bem, no seu combate pelos direitos e dignidade dos Açores ante o restante país. Só que os próprios escritores açorianos muito têm contribuído para o seu próprio estatuto de marginalidade, com a sua constante guerrilha, com as ambições desmedidas entre alguns deles em quererem ser os únicos num suposto panteão açoriano de Grandes e de Grandezas.
Sorriso por Dentro da Noite é também uma outra metáfora dessa nossa condição, pessoal e colectiva. Que recebeu um pouco por toda a parte o reconhecimento que merece, é sinal de que entre nós, apesar de tudo, existem essas bolsas de resistência humana, que nos dignificam e nos mantêm presentes no diálogo cultural e estético do nosso tempo e do nosso lugar. O resto não passa de ruído passageiro, condenado, sim, ao esquecimento, ao justo nivelamento, que só o Tempo permite.
Vamberto Freitas nasceu na Terceira em 1951. É Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores desde 1991, tendo publicado inúmeros estudos críticos e ensaios sobre as literaturas norte-americana e açoriana, neste momento preparando uma colectânea de ensaios sobre literatura luso-americana. Tem vários livros, entre os quais Jornal de Emigração (4 volumes) O Imaginário dos Escritores Açorianos e A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga. Tem publicado algumas traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e dalguma prosa de Katherine Vaz. C, intitulada O Outro Lado do Espelho: Imaginários Luso-Descendentes. Continua a colaborar em vários periódicos com textos de crítica literária e cultural.
Irene Maria F. Blayer
Agosto 2008