A História não se compõe apenas de episódios de vastas proporções, épicas batalhas, enérgicos governos, tempestuosas viagens de descobrimento. Um breve e suave encontro romântico pode denotar um tão profundo valor humano como os anteriores.
Foi este sem dúvida o caso do curto idílio que o último rei de Portugal, D. Manuel II, manteve com a cantora e bailarina francesa Gaby Deslys. D. Manuel, segundo filho de D. Carlos I e de D. Amélia de Orleáns, nasceu no Palácio de Belém a 15 de Novembro de 1889. A sua subida ao trono foi inesperada. Como se pode recordar, a 1 de Fevereiro de 1908 a família real regressava a Lisboa da sua residência de repouso em Vila Viçosa. Para o trajecto pelas ruas da capital, do Terreiro do Paço a Belém, D. Carlos recusou uma escolta de cavalaria, decisão que muito provavelmente lhe custou a vida. Ao passar perto do Arsenal de Marinha dois embuçados, Alfredo Costa e Manuel da Silva Buíça, dispararam contra os ocupantes da carruagem real, matando D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe e ferindo D. Manuel num braço. Aos 18 anos D. Manuel tornava-se assim rei de Portugal.
Gaby Deslys era um nome artístico. Marie-Elsie-Gabrielle Caire nasceu em Marselha a 11 de Abril de 1881. Era portanto oito anos mais velha do que D. Manuel. Cedo se tornou uma muito popular artista, a estrela de vaudeville que fez sensação em famosos cabarés parisienses, como Les Folies Bergères ou Le Chat Noir. Fotografias da época revelam nela um rosto particularmente gracioso e espectaculares chapéus e toilettes. Actuou de igual modo em Nova Iorque, onde foi a primeira a introduzir uma cena de striptease numa obra musical. A revista "La Belle Paree", que protagonizou na Broadway, exibiu-se também em San Francisco e Los Angeles. Durante a Primeira Guerra Mundial a artista prestou serviços de espionagem ao Governo Francês.
Um relato do encontro entre os dois, intitulado "Uma Página de História Galante – Amou D. Manuel Gaby Deslys? ", assinado por O Repórter Mistério, aparece no nº213 de O Notícias Ilustrado, de 10 de Julho de 1932, uma edição semanal do Diário de Notícias, iniciada em 1928. Se D. Manuel se apaixonou por Gaby pode ser na realidade discutível. No entanto, o que representa forte evidência é que se interessou vivamente por ela.
Este interesse originou-se com toda a probabilidade com revistas chegadas de Paris, que traziam fotografias da famosa vedeta. Uma destas, mostrando Gaby semi-nua, guardava-a o rei na sua cigarreira. No primeiro semestre de1909 o jovem monarca – contava então apenas 19 anos – escreveu três vezes para França, aparentemente com a intenção de motivar uma vinda da cançonetista a Portugal.
Retrato de Dom Manuel II,
Óleo sobre tela,Autor: Medina
O artigo de O Notícias Ilustrado mostra uma considerável reserva em divulgar quem patrocinou o encontro entre o então, ao que parece, inexperiente jovem em matéria de amor e a já muito afamada figura do mundo artístico. Parece contudo deduzir-se que algum membro da corte ou da representação diplomática portuguesa em Paris houvesse intervindo no caso.
Gaby apenas foi informada de que em Lisboa uma alta personalidade de grande destaque e muito rica se interessava por ela. "Mais, qui est-ce qui est?", perguntava. Isso não lhe era revelado de momento. Não convinha dar publicidade ao assunto. De qualquer modo a artista acedeu em vir à capital portuguesa com o pretexto de uma escala durante uma suposta viagem à Argentina, onde realizaria uma tournée. Talvez um artigo de Je sais tout, sob o título de "Le plus jeune roi de l’Europe", profusamente ilustrado com fotografias de D. Manuel, lhe tivesse proporcionado uma pista.
Chegada à Estação do Rossio na noite de 18 de Junho de 1909, a artista instalou-se no Avenida Palace, mesmo ao lado, sob o obscuro nome de Marguerite Béranger. Logo ali começava o sigilo da sua visita.
O primeiro e muito secreto rendez-vous teve lugar pelas dez horas de uma noite de domingo numa modesta e apagada casa particular da Rua da Infância, hoje Rua da Voz do Operário. Aí o rei pôde chegar sem espalhafato, como qualquer anónimo rapaz lisboeta, na cabeça um palhinhas dos que por esses anos se usavam e fumando uma cigarrilha. Mademoiselle Deslys já o esperava havia meia hora, consumindo cigarro após cigarro. Agora sim, já sabia com quem se ia encontrar e receava que alguma coisa falhasse. O que depois se passou, o jornalista discretamente cala.
Oito dias mais tarde teve lugar outro encontro, este um tanto ou quanto mais público e por consequência mais imprudente, um piquenique no Pinhal da Marinha, perto de Cascais, em que os dois amorosos compartilharam morangos de Colares e pastéis da famosa Casa Marques, do Chiado.
Parece que outros colóquios se seguiram na mesma casa, o que chamou a atenção de um semanário republicano. Preocupado, D. Manuel decidiu pôr termo a estas relações. Pediu então a um confidente, quase por certo um membro da corte, que fosse à Casa Leitão, na Travessa da Espera, os joalheiros da Corte desde 1873, e comprasse a Gaby um presente de despedida, uma pulseira ou outra jóia, desde que tivesse rubis, a pedra preferida dela. Sugeriu também que lhe fosse oferecido dinheiro, o que ela quisesse. E o rei escreveria uma carta, explicando a situação.
A jóia escolhida foi um pendentif de platina, com dois magníficos rubis. Agastada talvez pela oferta de dinheiro, Gaby disse que não o aceitaria. Quanto à jóia… "C’est assez", disse. Era bastante mas quis retribuir. E abrindo uma mala, tirou de lá um estojo com um anel também de rubis. "Leve isto a Sua Majestade", pediu.
Estava terminado o romance. E pouco mais de um ano depois, terminaria também o reinado de D. Manuel. A 4 de Outubro de 1910 rebenta em Lisboa uma revolta republicana e D. Manuel parte precipitadamente de automóvel para Mafra. No dia seguinte embarca na Ericeira no iate real D. Amélia para Gibraltar e daí para o seu exílio em Inglaterra. No palácio ficara entalado no espelho, frente ao qual o monarca se barbeara, um retrato de Gaby.
O desfecho final foi mais prosaico. D. Manuel casou a 4 de Setembro de 1913 com a Princesa Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen e faleceu em Twickenham, a 2 de Julho de 1932, de um ataque de difteria.
Em Paris, a 2 de Novembro de 1920, Gaby Deslys havia deixado este mundo. As causas do seu fim não estão claras. Uma fonte aponta para uma pneumonia, o artigo do Notícias Ilustrado alude a uma morte prematura "no seu leito de amor, uma madrugada, no faubourg Saint-Honoré" . Outra fonte ainda refere uma infecção da garganta. A ser assim, teria havido uma certa coincidência nas causas do desaparecimento dos dois amantes. Mas quase um século passou sobre esses eventos e deles pouco mais resta do que uma aura de mistério.
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(*)Fonte de referência da imagem de Gaby Deslys:http://eusouogatomaltes.blogspot.com