Não nos cansamos nunca do prazer que vem da palavra. Nem falo do que se tira e se volta sempre a tirar na leitura dos livros, do que se recebe de palestrantes bem informados e bem articulados e dos atores hábeis. Falo do coloquial de cada dia da gente comum, da típica maneira que certas pessoas têm de se exprimir. Que grande satisfação se pode extrair disso.
Nem todo mundo tem aquele dom de Seu Timotinho, velho morador da Vargem do Bom Jesus, ao qual já me referi mais de uma vez no jornal e em livro, aquele mesmo que, ao querer conceituar favoravelmente alguém, com inesperada e graciosa aritmética o qualificava como um sujeito seis por cento. Nem mais nem menos, seis por cento. Há uma poesia nisso, na palavra de Seu Timotinho e na de outros mais, não menos interessantes, que sabem a arte de reforçar o diálogo com apropriados e eficazes complementos, quais sejam os ditos antigos, as frases rimadas, as expressões maliciosas, os exageros de retórica. Ainda outro dia alguém dessa feliz categoria me contava a encrenca que teve com um indivíduo que cismou de querer avançar a cerca para dentro de um terreno seu: a fim de deixar bem claro que não ia aceitar aquilo e que, quando lhe pisam nos calos, não é moleza, ele disse o seguinte, vejam vocês a beleza de fala que empregou: levado com jeitinho, eu vou até pro inferno, agora, empurrado, não tem Cristo nem Virgem Maria que me leve pro céu.
Quando ouço homens de grave posição repetindo as suas mentiras de um modo tão pretensioso quanto carregado das mais chapadas barbaridades ("ele falou de que", "houveram dúvidas", "fazem muitos anos", "seje", essas maravilhas), penso: poxa vida, há quem subverta e até estropie a língua com mais graça – e de graça. Sinto daí uma vontade dos diabos de ouvir a prosa do Seu Timotinho ou então, já que Seu Timotinho está proseando num lugar lá no alto para o qual só planejo embarcar dentro de uns trinta anos, uma vontade de ir conhecer o estilo de conversação, digamos, do Isauro, por vários anos colaborador do Holdemar Menezes no sítio dele na Vargem Pequena. Eu já ouvira o nosso contista falar das excelências de caseiro do Isauro, não ainda dos seus encantos verbais.
Vejam que charme. Holdemar chega ao sítio, dá bom-dia a Isauro, respira avidamente o verde da propriedade, detém-se um pouco em algumas generalidades da existência, as condições do tempo, o desnaturado corre-corre de turistas e banhistas ali na estrada, depois quer saber como vão indo as coisas por ali. Indaga ao fiel amigo se ele deu aquele tal remédio para a égua Mimosa, que andava meio enfastiada. "Dei-lo", responde o sempre atento feitor. E plantou aquelas mudas de caqui, manga e cajá-manga que trouxe outro dia? "Plantei-las, doutor, plantei-las." E a patroa melhorou da gripe? "Melhorou-la, graças a Deus, melhorou-la".
Ninguém vai pensar, é claro, que Holdemar Menezes, ao trazer para fora dos muros de seu refúgio da Vargem Pequena essas peculiaridades de linguagem do auxiliar, cultive o gosto mórbido de rir delas, rir por achá-las merecedoras de riso, engraçadas. Rir assim por rir se ri da oratória pedante e manquitola de tantos figurões, de tantos políticos e causídicos, do seu vazio enfeitado, das suas lorotas cravejadas de solecismos.
Num caso como o do Isauro, o que ocorre ao escritor é o sorriso cúmplice, uma alegria diante da invenção saborosa e sem impurezas, da imprevista poesia que brota do inusitado. Holdemar não me disse que disse mas não duvido que, satisfeito com as melhoras da mulher do Isauro, tenha dito: "Melhorou-la? Que bom, que bom!".
A verdade é que falar tem muito, muito mesmo a ver com o coração. Como diria Isauro, sempre teve-lo.
(Do livro Uns papéis que voam,2003)
Crédito Imagens: Santo Antônio de Lisboa
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