José Rodrigues Miguéis
Durante as quatro décadas em que José Rodrigues Miguéis permaneceu em Nova Iorque, a sua correspondência com a família, os amigos e associados literários em Portugal serviu para manter fortes vínculos com o país para onde insistia que queria um dia regressar. O motivo deste breve texto sobre Miguéis é tentar explicar as suas tentativas de se re-estabelecer em Portugal entre 1946 e os fins da década de 60, e também explicar por que é que ele regressava sempre, e às vezes repentinamente, aos Estados Unidos, a terra que ele considerava a do seu exílio. Antes disso, porém, convinha considerar a relação, sem dúvida importante, entre a correspondência do autor, a sua autobiografia e a sua ficção. Poucos críticos haveriam de negar que a ficção de Miguéis é profundamente marcada pela sua experiência vivida – tanto que o autor às vezes não parece distinguir entre o mundo da sua imaginação e a sua própria vida. O exemplo mais patente desta tendência é a novela ‘A Chegada’, que conta as primeiras semanas de um jovem português em Nova Iorque em 1935, e na qual os nomes de duas personagens femininas, Magda e Estrela, mal disfarçam as ex- e futura esposas de Miguéis, Pola e Camila. A novela, que só veio a ser publicada em 2004, estava destinada a fazer parte do romance até agora inédito, ‘Esta Noite Durmo no Esquife’, escrito, ou pelo menos organizado, pouco antes da morte do autor em 1980, e que é uma espécie de carta confissional dirigida à mulher (a fictícia Estrela), sobre a vida do narrador com Magda, assim como com outras mulheres. Portanto, se ‘Esta Noite Durmo no Esquife’ é uma espécie de carta em forma de ficção, sobre a experiência do próprio autor, Rodrigues Miguéis, talvez seja admissível considerar a verdadeira correspondência do autor como fazendo parte da sua ficção, tanto mais porque Miguéis confessava que às vezes escrevia cartas que acabava por não mandar, da mesma forma que escrevia contos que depois punha na gaveta, sem os publicar.
Miguéis deixou Lisboa em fins de Junho de 1935. Não era a primeira vez que saía de Portugal. Já tinha passado dois anos em Bruxelas a estudar ciências pedagógicas. Lá conheceu a mulher com quem iria se casar, Pecia (Pola) Cogan Portnog, estudante da Bessarábia, e que é reconstruída como Magda na obra de ficção já mencionada. Ao regressarem a Lisboa em 1933, as relações entre Miguéis e Pola/Magda tornaram-se cada vez mais tempestuosas, devido em grande parte à incapacidade da Pola de se adpatar à vida portuguesa. O romance autobiográfico, ‘Esta Noite Durmo no Esquife’, apenas ilustra e reforça aquilo que sabemos da correspondência do autor. Quando o casal iniciou uma separação temporária em 1935, um dos maiores suportes de Miguéis foi Camila Pitta Campanella, luso-americana, com quem tivera um breve namoro durante a visita que ela fizera a Lisboa em 1928. Não se sabe se a Camila reapareceu em Lisboa como a Estrela fez na ficção, para iniciar uma relação amorosa com o autor/narrador na sequência do seu rompimento com a Magda/Pola, mas o certo é que foi a Camila quem encorajou e ajudou Miguéis a partir para os Estados Unidos no verão de 1935. Miguéis, como republicano da velha estirpe, era inimigo da ditadura que se consolidara em Portugal em 1933, mas não se deve restringir a sua saída de Portugal a motivos meramente políticos. Após um casamento fracassado, e talvez para fugir de uma reconciliação com a Pola/Magda, sem carreira fixa no país, Miguéis precisava de uma mudança de ares, ou como explicou na sua ficção: ‘Queria renunciar a tudo, fazer tábua-raza do passado, recomeçar a partir do zero, esquecido, anónimo e humilde, sem títulos nem falsas ou fiáveis glórias, sem ambições nem altas aspirações – as que via à minha volta, na mediocridade recompensada: viver e ganhar o meu pão (como tu) na obscuridade de um trabalho quanto possível adequado às minhas aptidões…’ E se foi forte o sentimento de culpa por deixar em Lisboa a mãe, já idosa, e a irmã solteira e solitária, ele supunha que a sua estada nos Estados Unidos não passaria de alguns meses ou um ano, tal como fora a permanência na Bélgica.
Miguéis, porém, só regressaria a Portugal onze anos depois. Precisava de regularizar a sua situação em Nova Iorque, procurar trabalho, sem falar em procurar o divórcio para poder casar-se com a Camila, e quando começou a Segunda Guerra, qualquer plano de regressar à terra natal teve de ficar em lume muito brando. Mas uma nota escrita em Janeiro de 1939 sobre o seu editor na revista La Hacienda, para a qual Miguéis fazia traduções, indica uma sensibilidade em relação à situação do imigrante, que poderíamos aplicar ao próprio autor durante as décadas seguintes. O seu colega, um galego, tinha na altura trinta anos de Nova Iorque: ‘Sucede com estes homens isto: ao fim de alguns anos de América (…) não conseguiram ser americanos (…) e deixaram de ser quem eram’.
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