Sobre “A Lagoa dos Castores e Outras Narrativas da Minha Diáspora” de Francisco Cota Fagundes
Há dois anos tive o privilégio de apresentar, na Casa do Povo da Agualva, o livro No Vale dos Pioneiros – Narrativas da Minha Diáspora* no qual Francisco Cota Fagundes reuniu duas dúzias de estórias. Nessa altura, comentei que uma das minhas perplexidades de leitor era o facto dessas narrativas se ficarem entre o conto e a narrativa, num encantamento gerado pela boa escrita, sob uma euforia provocada também pela coragem do autor em partilhar aquilo que parecendo ficção não o é, até porque ele (narrador) nunca se afasta da responsabilidade de o ser, comprometendo, sem reservas, o seu próprio eu. Esta presença será autobiográfica quanto quisermos, já que Cota Fagundes não enfeita a sua escrita com a intenção de disfarçar o que quer que seja. Por isso, não admira que os seus heróis nem sempre fiquem favorecidos no retrato. Referi também que os retratos desses heróis eram traçados com grande conhecimento do rosto interior que cada um, independentemente do seu domínio da técnica narrativa de ficção.
Digo exactamente o mesmo em relação a este livro A Lagoa dos Castores e Outras Narrativas da Minha Diáspora. Desta feita, colhe três dezenas de textos, que dão continuidade às narrativas do primeiro, mas estas são, porventura, mais amadurecidas e também mais comprometidas com as pessoas, com os factos e os espaços que as envolvem. O leitor volta a ficar perante a tal coragem do autor, que não teme o auto-afrontamento, embora não se esteja perante uma autobiografia no sentido clássico da palavra (aliás, Cota Fagundes escreveu-a já e de forma magistral). Neste livro, apuram-se factos e momentos que a memória fez emergir como se, de alguma maneira, se pudesse apagar o passado atirando-o ao mundo sob a forma de livro.
Neste alinhamento autobiográfico, cabe uma parte significativa destas narrativas, que são escritas por um emigrante açoriano, com uma vivência incomum, mesmo que, acidentalmente, pareça ser semelhante a de todos os outros. Ainda hoje, ao falar-se de emigrantes, colhe-se a sua importância pela conta bancária que não pode ser pequena. Como se sabe, o êxito de Cota Fagundes passou e passa por uma notável carreira académica, enformada em meios universitários de grande prestígio – o correspondente a uma conta intelectual com valorização continuada. Apesar disto e tal como a do outro emigrante, a caminhada de Cota Fagundes não está isenta de grandes contrariedades, de sacrifícios, de sofrimentos. A vida não lhe deu apenas coisas boas. Abra-se este livro em alguns dos seus títulos, como «Joanne Piston» e «Como escrever o teu retrato, Pai?», entre outros. Há também narrativas que mantêm o olhar realista do autor, sem mais burilados literários, centradas, sobretudo, na vida académica, numa linguagem brechtiana de «grandezas e misérias». Mas, para além destas narrativas de feição literária mais realista, há outras que, pelo seu desenvolvimento, revelam uma outra faceta do autor – o seu humor – aqui deixado de forma volátil e elegante, humor profundo, capcioso e, por vezes, bem corrosivo. Neste humor cabe parte substantiva do nosso apetite de leitura.
Permito-me chamar a atenção para algumas das narrativas onde esse humor é mais pertinente. «Deves-me a vida» é o reencontro não desejado de pessoas que esconderam segredos de ordem sentimental. Protagonizam a juventude irreverente e a maturidade atrevida. A ironia está exactamente na cobrança que a juventude aplica sobre a maturidade. «Merri Crismas» desfaz um ciúme doentio sob a forma de equívoco. A sombra de uma árvore de Natal, no ponto de ir para o lixo, bem se pode assemelhar à prática de um amor traído. Se calhar por razões de equilíbrio, o autor apresenta «Uma sepultura em Ludlow», com a esposa, cuidadosa e prevenida, a comprar – de forma muito antecipada, graças a Deus! -, a sua própria sepultura. A frieza desta decisão contrasta com a hipocondria do autor em «O meu último enfarte». Na verdade, apesar do leitor se deixar contagiar pela sinceridade do narrador, bem estavam os paramédicos em não dramatizarem o estado do suposto doente. Finalmente, não deixem de ler as peripécias vividas pelo texto original deste livro, remetido dos Estados Unidos da América para os Açores, mais concretamente para a freguesia da Maia – S. Miguel. Trata-se de uma grande lição sobre os benefícios da ignorância geográfica. É narrativa a não perder.
Poder-se-ão resumir os conteúdos deste livro ao registo de um quotidiano que, em tudo, parece tão simples e vulgarizado. No entanto, o talento de Francisco Cota Fagundes empresta-lhes uma vida que, mesmo nos seus aspectos negativos, apetece viver estando dentro. Esta é uma das características com que a escrita de Cota Fagundes melhor nos alicia convencendo, e este convencimento só é possível quando provem de alguém que sabe utilizar, de forma adequada, os instrumentos da escrita.
Ao preparar este pequeno texto de apresentação, deparei-me com referências a Francisco Cota Fagundes que não posso deixar de lembrar aqui. Essas referências vêm de gente do mundo académico – que é o dele – e são assim: De Onésimo Teotónio Almeida: «este contador de estórias sabe narrá-las e sabe fazê-lo como os grandes mestres da ilha em que nasceu. Um deles é Nemésio, de quem, por sinal, Francisco Fagundes traduziu para inglês o famoso romance Mau Tempo no Canal . Os seus patrícios, da Terceira, dos Açores e, de resto, de Portugal, de certeza que vão ler com imenso prazer este livro de quem sabe contar causos da vida dele, que são, em simultâneo, directa ou indirectamente, da vida de todos nós.»
Ficaria aqui tudo dito. Mas tenho que fazer outra citação, desta feita de Vamberto Freitas, atento leitor e comentador do quanto se escreve nos espaços da diáspora açoriana. Embora estando em análise o livro O Vale dos Pioneiros, tem perfeito cabimento este comentário de Vamberto: «Não são exactamente ‘memórias’, são representações do que e como um intelectual e escritor português de origem açoriana sobe aos mais altos escalões da exigente academia americana, para depois dissecar em escolhidas fatias-de-vida essa sorte ou desnorte no fantástico mosaico humano em que se tornaria a América dos nossos dias. Pululam aqui portugueses, luso-americanos, anglo-americanos, brasileiros – em suma, vidas comuns e vidas extraordinárias, quase sempre em confronto ora com existências bem cimentadas ora passando pelos dias em estado de precariedade perpétua.»
Porém, esta apresentação é bem desnecessária. A Lagoa dos Castores e Outras Narrativas da Minha Diáspora dispensa a formalidade, até porque tem um prefácio bastante objectivo assinado por Daniel de Sá. É um bom começo de leitura. Por isso, mais vale ler este autor, que é terceirense, pleonasticamente cidadão do Mundo, de nome Francisco Cota Fagundes, que guarda ainda muitas outras estórias para nos contar e contar a seu jeito – que é como quem diz: contar bem. Ele está aqui para partilhar connosco este seu livro. Vamos, então fruir este momento.
Álamo Oliveira
5 de Janeiro 2011
Nota: Texto publicado no Comunidades em Agosto 2008 (http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?SOBRE-AS-NARRATIVAS-DE-FRANCISCO-COTA-FAGUNDES-Alamo-Oliveira.rtp&post=3024).
Álamo Oliveira (José Henrique do) nasceu na freguesia do Raminho – ilha Terceira, Açores. Depois dos estudos no Seminário de Angra, foi funcionário em diversos departamentos governamentais ligados à Cultura. Aposentou-se em 2001. Como escritor tem 34 livros publicados com poesia, romance, conto, teatro e ensaio. Está representado em mais de uma dezena de antologias de poesia e ficção narrativa, em Portugal e no estrangeiro. Tem poesia e prosa traduzidas para inglês, francês, italiano, espanhol, croata, esloveno e japonês. O seu romance Já não gosto de chocolates foi traduzido e publicado nos Estados Unidos da América e no Japão. Até hoje, memórias de cão (3ª edição) recebeu o prémio «Maré Viva», da Câmara Municipal do Seixal, em 1985; Solidão da Casa do Regalo (teatro) recebeu o prémio «Almeida Garrett», em 1999. Em 2010 Álamo de Oliveira foi distinguido com a Insígnia Autonómica de Mérito Profissional pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.