A Poesia Açor-Americana De Uma Tal Família Santos
Vamberto Freitas
Nada haverá nada de mais sincero na reacção a um poema do que o primeiro impulso e “intuição” nossa após chegarmos à sua última página. Estamos aqui, diga-se sem qualquer demora, com alguns dos melhores poemas alguma vez escritos sobre o passado profundamente açoriano seguido da vivência no outro lado do mar e da vida – na visão do seu narrador ou narradores do fingimento, como neste caso. A School For Fishermen do açor-americano Carlo Matos torna-se uma viagem de catarse por geografias vividas e imaginadas, uma narrativa a várias vozes, todas inter-relacionadas numa só “família”, que tentam esconjurar a ansiedade das sombras de um passado que nos persegue tanto em dias luminosos como sombrios, esses fantasmas que não nos deixam nunca em paz interior, a condição primordial e estado de alma procurados até ao infinito. A clareza da sua linguagem, em versos estruturados ou livres, leva-nos linha a linha para lugares e cenários sempre inesperados, o “óbvio” quase tendo o mesmo poder que a ironia e o humor que formam e enformam estes poemas: Conheci o filho de Alberto Caeiro/um verdadeiro guardador de rebanhos./ Bebi a sua cerveja e consertei as suas paredes; ou, no outro lado da retórica poética, Praias não têm árvores./E se as têm, orlam as dunas de areia. Vai daí? Nada, apeteceu-lhe dizê-lo e disse-o. O centro está vazio e a vida fica nas margens? A voz que inventa um filho do mais rural heterónimo pessoano não é nem poderia deixar de ser a mesma que mais tarde fala também de certos caprichos da Natureza — juntam-se na sua capacidade de reinventar a própria ficção das suas vidas e dos espaços que ocupam, como que reafirmando que uma “verdade” não terá mais significado algum do que uma “imaginação” febril, tentando ambos, em qualquer dos casos, perceber os mistérios do seu destino.
Agora, o inevitável parêntese. Carlo Matos é filho de imigrantes açorianos micaelenses, nascido em Fall River, mas hoje doutorado em literatura com uma tese a ser publicada em breve intitulada Ibsen’s Foreign Contagion, actualmente professor da City Colleges em Chicago, animador ainda de noites poéticas num café daquela mesma cidade, deliciosamente chamado Chicago Poetry Brothel, que suponho não necessitar de tradução nenhuma para os nossos leitores. Tem publicado em várias revistas, como Houston Literary Review, Radiant Turnstile e Mad Hatters Review. Perece estranho, mas a verdade é que muitos destes escritores e poetas só recentemente se descobriram mutuamente como parte de uma já substancial comunidade literária luso-americana, conhecida mais por outros do que por nós, e que a cada dia nos revela um outro nome, quase todos assumindo, mesmo num mid-west que de portugueses pouco saberá, as suas raízes ancestrais. No mês de março vão reunir-se muitos deles num encontro especial denominado Kale Soup For The Soul/Sopa de Couve Para a Alma, no Chicago Cultural Center, e no qual estarão presentes, entre alguns outros, Oona Patrick, Lara Gularte, Carlos Queirós e Millicent Borges Accardi, já recenseada neste espaço. Matos faz questão de dizer que ainda tem um numeroso clã de sangue nesta ilha, que ele visitava com certa frequência na sua infância. Muito mais tarde, disse-me num correio electrónico, levaria a sua esposa, que não é portuguesa, a Lisboa e a esta terra de seus pais e antepassados muito mais longínquos para que ela conhecesse a restante família. A última vez que veio cá foi em 2001, e falou-me das mudanças radicais que viu nuns Açores que ele ainda conheceu sem televisão, com um só telefone na “sua” freguesia dos Mosteiros, e o leite matinal entregue de porta em porta por carroça. Lamentou-se de que já nessa altura quase já não reconhecia nada, nem sequer as Furnas, com turistas a mais, ou Ponta Delgada. Poupar-lhe-ei ao resto da história, até que ele regresse para rever tudo em pessoa, e abane uma vez mais a cabeça.
A School For Fishermen, para além da nota do autor parcialmente reproduzida aqui em epígrafe, abre com a mais cómica tábua genealógica que alguma vez li em qualquer peça literária. Dividido em cinco secções que se interligam pela temática da busca de um nicho de vida, cada um dos seus “narradores” fala do seu passado e presente, ora com ironia e humor, ora com saber clássico ou na maior confusão e perdidos ante o mistério que é sobreviver no nosso tempo: “João Filipe Santos, St Michael, Azores” até a “The Girl Who Was Also a Jellyfish, Voice of Melinda, Unknown” (“cujo verdadeiro nome completo é desconhecido…e não sabe nada de seu pai”), todos numa viagem íntima que vai desde a vida recordada num perdido e raramente lembrado recanto ilhéu a um Doutor cientista em busca de carreira na América dos nossos dias, a terra prometida em que estes personagens parecem já não acreditar. É claro que em volta de todos há quase sempre mar, mesmo num país-continente imenso de território sólido sem cerco; só que a memória genética de todos parece incapaz de esquecer outras origens e futuro sonhado, mesmo que do início da caminhada totalmente esquecidos pela passagem do tempo ou na ânsia da mera sobrevivência. Como na melhor poesia norte-americana, não há queixume nem sentimentalismo por parte de nenhum deles, mas sim a constatação dos desvios vividos e do destino, a exteriorização do saber sem livro, o impulso instintivo de como continuar existindo rodeado de seres tão estranhos e alienados como eles próprios. “…E a minha família já sentia a vergonha da minha existência sem rumo/porque a minha freguesia era tão pequena como eles próprios./Nunca pretendi, como ainda hoje não pretendo, humilhá-los ainda mais”. Não há condescendência, nem poderia haver, na melhor literatura luso-americana desta geração que, não tendo muitas referências nossas na língua inglesa, vira-se com insistência para Fernando Pessoa, a voz sem par em qualquer tradição literária da esquizofrenia criativa do ser, das “multidões” que em nós habitam, como Walt Whitman, também pai poético de todos eles primeiro do que ninguém, anunciou alegremente, e pouco depois levaria o poeta do Martinho da Arcada a reivindicá-lo como antecessor angustiante.
Cada verso de Carlo Matos surpreende-nos com o inesperado, dizendo simplesmente e sem aviso o contrário do que esperávamos, como quem já lê pensando que nada mais de novo nos espera. Isso é a literatura no seu melhor: o espelho que tudo distorce sem nunca “mentir” sobre a essência do que nele se reflecte. Cada um aqui – como nós todos, mesmo que inconscientemente – está demasiadamente repartido para se perceber inteiro. O poema de abertura, “Stonemasonry/Trabalho de Pedreiro”, é o intróito “açoriano” em todo o seu esplendoroso primitivismo sem inocência mas com erudição histórica nas certezas asfixiantes da pequenez, o seu aviso às gerações seguintes, esses já longe da terra escondida e tremida dos seus primogénitos, os que terão de se orientar sem bússola em cidades-outras sem memória nem instruções da tradição ao mesmo tempo de certezas reconfortantes e sufocantes. A sua liberdade na Terra Nova é o seu próprio aprisionamento. A sua lucidez é a sua insanidade, e insanos são alguns destes narradores. Desde Katherine Vaz e Frank X. Gaspar que esta convivência entre “vozes” do saber institucional ou livresco e da sabedoria sem letras não tinha expressão. Na literatura norte-americana não são as ideias ou opiniões de personagens que definem um país, ou sequer uma cultura. São os indivíduos que, cada um a seu modo e no eventual relato da sua aventura à procura do seu lugar, acabam por dar corpo a uma outra maneira de estar vivo
– ou derrotado — na vida. Esta narrativa poética encerra em si todas as angústias, todos os sonhos e desgostos inerentes ao que pensamos entender como sendo um novo mundo. Americanos e americanos – estes são os nossos, dando conta de si, lembrando o que não pode ser esquecido.
A School For Fisherman/ Uma Escola Para Pescadores foi seguido por Counting Sheep Till Doomsday. O riso e o choro, sempre, de todos nós, de todas as famílias
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Carlo Matos, A School For Fishermen, Baltimore, BrickHouse Books, Inc., 2009. Todas as traduções são da minha responsabilidade.
(*) Vamberto Freitas ,açoriano,natural da freguesia Fontinhas,Ilha Terceira. Vive em São Miguel onde é professor do Depto. de Literaturas e Línguas Modernas da Universidade dos Açores. Crítico literário, ensaísta.
Muito em breve a sua expressiva produção literária será enriquecida com mais um livro seu.
Visite: Nas duas Margens – http://vambertofreitas.wordpress.com
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