PENTEANDO A MEMÓRIA 30
CARLOS ENES
Gervásio Lima (1876-1945) foi um dos escritores que mais marcou o imaginário terceirense por ter dado um cunho heroico a um conjunto de personagens da nossa história local.
A sua vasta obra estende-se – tanto em prosa como em verso – pelo conto, teatro, etnografia e pela história. Foi no campo da história, não como investigador mas como escritor romântico, que deu largas ao seu patriotismo e amor à terra. Pouco preocupado com o rigor científico, deixou a imaginação funcionar e moldou os seus heróis com o mesmo entusiasmo e empenho com que um ceramista retoca as suas peças. Os seus textos, pela divulgação que tiveram junto de camadas mais populares, foram fundamentais para a construção do nosso imaginário histórico.
O perfil da “heroína” Brianda Pereira pode servir de exemplo. Sem documentos que o comprovassem, elogiou a sua beleza e colocou-a a armar homens e mulheres e a incitá-los na luta contra os castelhanos. Na sua opinião, o papel de Brianda foi determinante na vitória da Salga. Numa linguagem empolgante, o leitor mais desprevenido deixa-se levar pelas suas palavras e acredita plenamente no que ele escreve. Deste modo, se foram reproduzindo os mitos em relação a alguns dos nossos heróis que vivem ainda na imaginação popular.
Por estes motivos era muito apreciado pelos seus escritos, a que dedicou toda a sua vida.
Uma vida nada fácil. Nasceu na Praia da Vitória em 1876, tendo ficado órfão de pai aos cinco meses de idade, pelo que começou cedo a trabalhar, após a conclusão dos estudos primários. Viveu na Praia até 1914, mudando-se depois para a cidade de Angra, onde exerceu funções de ajudante (1914-17) e posteriormente de bibliotecário (1917-45) na Biblioteca Municipal.
(Casa onde viveu, na R. de Santo Espírito)
Desde muito jovem revelou inclinação para as letras. Na área do jornalismo, fundou e dirigiu os periódicos A Primavera (1905), o Cartão (1903) e O Imparcial (1907-13), todos na Praia da Vitória. Em Angra do Heroísmo, dirigiu O Democrata (1914-20) e ABC (1920), Cantos & Contos (1935). Paralelamente, prestou uma vastíssima colaboração noutros periódicos angrenses. Utilizou os pseudónimos de João Azul, João das Ilhas, João do Outeiro e Tomé da Eira. Tornou-se proprietário da Tipografia Insulana Editora, nos anos 20, mas sem sucesso.
Parte do produto da venda de algumas das suas publicações era empregue em obras de caridade. Morreu pobre e viu-se obrigado a pedir uma pensão a Salazar, nos finais dos anos 30, porque os seus rendimentos não eram suficientes para o sustentar a ele e à mãe. Empenhou-se na organização de eventos comemorativos de acontecimentos históricos, na organização de jogos florais e em homenagens a terceirenses ilustres. Recolheu e publicou textos de cantadores populares, contribuindo assim para a divulgação dessa tradição. Foram-lhe prestadas homenagens pelas Câmaras Municipais de Angra (1928) e da Praia (1936) e pela Junta Geral do Distrito (1934). Tanto em Angra como na Praia foram colocadas placas nas casas onde viveu e faz parte da toponímia local.
(Colocação da placa, em 1949)
Foi sócio efectivo fundador do Instituto Histórico da Ilha Terceira, sócio das Academias de Cádis e de Sevilha, das Sociedades de Geografia de Lisboa, Paris, Gènéve e Itália, sócio dos Institutos do Minho, de Coimbra e da Baía. Foi Cavaleiro da Ordem de Santiago.
Em termos políticos situou-se no campo republicano, nas proximidades do Partido Republicano Português, e apoiou publicamente nos jornais locais a Revolta dos Deportados, em 1931. Pelo facto, foi um dos poucos civis a ser punido, na qualidade de funcionário público, com 60 dias de suspensão. Uns anos depois, acabou por escrever um artigo em que coloca Salazar no pedestal dos fundadores/regeneradores da nação. Esteve muito provavelmente ligado á maçonaria. O autógrafo de Magalhães Lima, no seu livro A Pátria Açoriana, pode ser um indício que ainda não se pode comprovar.
As suas obras mais conhecidas serão A Pátria Açoreana (1928), Serões Açoreanos (notas históricas) (1933), Breviário Açoriano (1934) ou a A Turlu na Califórnia (1938).
Na Tipografia Moderna existe, já paginado e ilustrado, por ele ou pelo seu amigo Cruz, um pequeno livro, como testemunho do seu árduo trabalho até à hora da morte. Pode ser que um dia seja publicado, embora não possa ser considerado um texto de fôlego.