Dias de Melo e a necrofilia literária
Conheci o escritor Dias de Melo em 1978, nas instalações da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa, numa altura em que se discutia a existência ou não de uma literatura açoriana. Eu era então um jovem estudante universitário e andava envolvido num projecto cultural chamado “Memória da Água-Viva”, à frente do qual estavam os poetas Santos Barros e Urbano Bettencourt.
Ao longo de três décadas, mantive com o escritor uma longa relação de amizade, de camaradagem literária e outras cumplicidades. Escrevi recensões a praticamente todos os seus livros. E sempre o conheci igual a si próprio: um homem solidário, solitário e fraterno, viciado na escrita e no cachimbo, baleeiro da literatura açoriana, picaroto que da Calheta de Nesquim escrevia para o Mundo.
Escritor da condição humana, Dias de Melo nunca fez concessões a modas literárias. E foi sempre um contador de histórias – dos homens do mar e da terra – gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana e universal.
Já muitos têm catalogado Dias de Melo como autor (neo-realista) de temáticas baleeiras. Nada mais injusto e redutor. É que também ele escreveu, com igual mestria, sobre camponeses, pescadores, operários, vaqueiros e muitas outras classes sociais. É certo que este autor deu à literatura portuguesa um testemunho empolgante sobre a história anónima e colectiva dos baleeiros da ilha do Pico, num cenário de contencioso social. Com efeito, ninguém melhor do que Dias de Melo soube captar a verdadeira dimensão humana, social e dramática da saga baleeira, sobretudo nos livros que constituem aquilo a que Santos Barros chamou de “trilogia da baleia” e João de Melo considerou “o ciclo da baleia”: Mar Rubro (1958), Pedras Negras (1964) e Mar pela Proa (1976), sendo que Pedras Negras, a sua obra mais emblemática, foi já traduzida para inglês e japonês.
Dias de Melo soube aguentar o rumo da escrita, num percurso literário cujo universo temático consubstancia à sua volta a distância, a ausência, o tempo, a saudade, o afecto, a solidão, o amor, o ódio, o sonho, o pesadelo, a vida e a morte, no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana.
Aos 83 anos de idade, o escritor Dias de Melo deixou de “escreviver”. Desapareceu o homem, mas fica a obra – mais de 30 livros publicados em diversos registos e diversificados géneros literários: a poesia, a narrativa, o conto, a novela, o romance, a crónica, a monografia, a dissertação didáctico-pedagógica, a recolha e o estudo etnográfico.
Este picaroto fez da sua vida e da sua obra um acto cívico. Agora que partiu, ecoam por aí muitos e desvairados elogios, sobretudo por parte daqueles que nunca escreveram nem disseram uma só palavra sobre a notável obra do escritor enquanto esteve vivo… As litanias de exaltação surgem da pena de quem menos se esperava. Mas já se sabe: a necrofilia literária instituiu-se em Portugal. Só depois de morto é que o escritor terá a sua consagração. Ao silêncio que se lhe votou em vida corresponderá a canonização post-mortem. Sim, a morte dos escritores facilita a vida a certos estudiosos da coisa literária…
Há quem entre nós continue a promover aquilo a que António Sérgio chamou “o culto do osso”. As academias, por exemplo, são danadas para o requiem. As suas carpideiras, que vestem de luto a História da Literatura, apressam-se agora a reconhecer virtudes a Dias de Melo quando antes do seu silêncio final lhe recusava as recensões e lhe silenciava os livros. Aos necrófilos não interessa quem está vivo e não foi ainda mitificado pela morte. Como o escritor é agora um morto exemplar, aproveitam o de profundis e concedem-lhe referência obscura no panteão dos vultos transitórios.
Dias de Melo, que em vida foi um homem furiosamente rebelde, está agora dócil e moldável ao que quiserem fazer da sua obra, já não compromete aqueles que o ousem tocar. Agora sim, o escritor baleeiro passou a ter existência contemporânea.
Termino com esta certeza: o escritor Dias de Melo só morrerá no dia em que deixarmos de o ler. Até lá está vivo e bem vivo!
Victor Rui Dores
(*) O autor,Victor Rui Dores, é natural da Ilha Graciosa mas vive no Faial onde se faz ouvir na poesia, na crônica,no romance, no ensaio,na crítica literária, na dramaturgia. É um artista multifacetado: pois sua vida é Arte e por ela expressa seus sentimentos e sua criação.
Professor,diretor de teatro,letrista excelente, com inúmeras obras publicadas,Victor Rui Dores é um homem das letras, da cultura açoriana.