“Erros meus, má fortuna, amor ardente”
Uma réstia de luz beija-lhe o rosto de cera, pálido e sofrido. A noite foi de agonia e Simão sentiu-se a vaguear numa espécie de limbo, ancorado a uma não-vida. Tenta erguer o braço para agarrar o copo de água, mas está demasiado longe. Quão longe pode ficar um objecto num momento de extrema fragilidade e quanta força seria necessária para o deslocar. Desiste e fecha os olhos novamente.
Simão parecia ter nascido abençoado pela natureza: era bonito, nascido em berço de ouro e com o mundo aos seus pés.
A família queria-o médico, casado, fútil e feliz.
Mas não. Trilhou de outro modo o seu destino. Tinha uma voz de barítono, um fascínio tremendo pela música e pela poesia.
Fora poeta e cantor maldito, a vaguear e a cantar no metro de Lisboa, depois de Paris, Barcelona ou Madrid, após ter desbaratado as generosas mesadas dos pais, numa vida boémia e desregrada, marcada pelo álcool, pela droga e por experiências extremas que o levaram a dormir debaixo de várias pontes, a ser assaltado, agredido, violado…
Chegara a casar, tivera uma filha, mas um dia, inexplicavelmente, apaixonara-se por um rapaz com menos vinte anos, um verdadeiro “deus apolíneo” loiro, com um corpo escultural e uns olhos de safira.
Esse havia sido o golpe fatal na relação com a família, que nunca mais pronunciou nem quis ouvir o seu nome.
O seu amado chamava-se Artur e a sua beleza e inteligência eram proporcionais à maldade que continha.
Conhecera-o quase na “meia-idade”, após os quarenta e cinco anos, quando estava prestes a virar a “curva da estrada”, ou seja, a abandonar definitivamente os ímpetos da juventude. Só que, no seu caso, a mudança fora bem mais radical. Súbita e inexplicavelmente sentira por aquela rapaz a atracção que antes apenas as mulheres mais formosas lhe haviam despertado. Enfim, talvez aquele tipo de sentimentos habitasse já algum canto recôndito do seu coração, esperando apenas aquela centelha que o atearia. No fundo, nem sequer sabia: passara a vida demasiado anestesiado pelo álcool, pela droga, pelo frenesim das festas para olhar para o fundo de si mesmo.
Passara muito tempo a tentar desobedecer à família, ao bom senso, à sociedade, a procurar construir o seu percurso de marginal, de artista maldito. Talvez aquela paixão fosse mais uma forma de desenhar esse retrato, de representar essa personagem que, às vezes, até duvidava que existisse.
Mas agora nada interessava.
Apaixonara-se por Artur, numa altura em que já estava à beira da miséria, após uma vida dissoluta. Só que o seu amado era profundamente ambicioso e o apelido de Simão brilhava e retinia como moeda do mais puro ouro.
Ao ver que ele não passava de um miserável, Artur sentiu-se seriamente desiludido. Chantageou-me como só ele sabia fazer, manipulou-o, arrastando-o para os mais ínvios caminhos da criminalidade.
Por ele, Simão envolveu-se em numerosas burlas e cruzou a linha da criminalidade, assaltando um banco. Aliás, aquela paixão era tão intensa que ele roubaria a minha própria luz, se Artur lha exigisse.
Foi preso e passou oito anos na cadeia, sem uma única visita de Artur, sem um telefonema ou uma carta. O telefone estava desligado e as cartas desesperadas que lhe enviou vieram sempre devolvidas. O seu Adónis parecia ter-se convertido numa miragem e desaparecido subitamente, num golpe de magia.
Na cadeia, Simão tivera um comportamento exemplar que lhe reduzira a pena. Era particularmente cordial, um pacificador nato e passava a maior parte do tempo a ler, quando lho permitiam. Raramente falava e isso deixava-o fora das intriguices e das negociatas corruptas a que se entregavam os outros reclusos.
Passados sete anos de reclusão, Simão começou a sentir-se preocupado e apreensivo. Não queria ser libertado. Estava a ficar velho, não tinha nada de seu e sabia como o mundo lá fora podia ser cruel com os mais fragilizados. Aquele era já o seu Lar, a sua vida. Os companheiros que entravam e saíam ou acabavam por falecer – que era outra forma de libertação – eram a sua família.
Que armadilhas, que ciladas o esperariam do outro lado das grades? Para que queria ele a liberdade, se era bem mais cómodo não a ter? Se tivesse, ao menos, uns braços abertos à sua espera, alguém que o aguardasse. Mas não!
Com o passar dos anos, roída pela ausência e o silêncio, a paixão por Artur extinguiu-se completamente. Acabou por rasgar a fotografia que mantivera dele, da mesma maneira que ele lhe havia rasgado a alma em tantos pedaços que parecia impossível voltar a juntá-los.
Começou a traçar mórbidos planos para o temido “dia da libertação”. Havia duas hipóteses: o suicídio ou cometer um pequeno delito que o trouxesse de volta. Não era homem para desistir da vida, por maior que fosse os desespero ou as dificuldades, considerava que pôr termo à vida era coisa de fracos ou de artistas tresloucados. Por isso, começou a planear assaltar o supermercado que ficava mais próximo da cadeia. Assim seria imediatamente apanhado e não correria o risco de ser encarcerado noutro estabelecimento prisional.
Naquela tarde soalheira de Julho, já tudo estava planeado com o mínimo pormenor.
Só que a manhã trouxe-lhe uma inusitada surpresa: uma sobrinha que não via desde a tenra infância, apareceu na cadeia.
Reconheceu-lhe imediatamente o olhar líquido azulado e doce, que parecia ter herdado da sua avó, a mãe de quem ele também herdara os olhos azuis como o oceano.
Mónica disse-lhe que soubera havia pouco da sua situação. Vivera até àquela data nos Estados Unidos. Divorciara-se, não tinha filhos, nem mais família e a situação financeira era bastante confortável. Aliás, o pai dela herdara toda a fortuna da família, visto que António fora deserdado. Por isso, ela achava que ainda havia tempo de tentar corrigir aquela pequena injustiça.
Na adolescência, havia seguido a carreira do tio e coleccionara todos os cd que ele gravara. Identificara-se com ele, na rebeldia da juventude, na perseguição louca dos sonhos, contra ventos e marés, contra tudo e contra todos.
Ele comovera-se profundamente e aceitara, grato, aquela mão de fada desconhecida que parecia surgida do nada.
Os meses seguintes, haviam sido, afinal felizes, de uma felicidade plácida, tranquila, como ele nunca pensara conhecer.
Pouco depois descobrira que era seropositivo. Rapidamente o HIV começou a apoderar-se do seu corpo fragilizado.
Fora então que preferira ir para aquele Lar de Terceira Idade, onde tinha cuidados médicos necessários, já que não se atreveria a sobrecarregar a sobrinha com o fardo da sua velhice, nem da sua doença.
Agora ali estava no leito e sem vontade amanhecer. Sentia que o seu corpo estava exausto e a sua alma parecia querer partir como um pássaro aprisionado há demasiado tempo.
Inexplicavelmente, os seus dedos tocaram de novo a pele acetinada de Artur, numa última carícia:
“Erros meus, má fortuna, amor ardente….” Teria Camões pensado isso no seu último momento, ao exalar o último suspiro?
Abriu a gaiola e a ave voou livre, no azul do céu.
Uma mão amiga fechou-lhe os olhos e puxou o alvo lençol que lhe cobriu o corpo inerte. A luz beijou-lhe o rosto gélido de cera pela última vez.
In A Oeste do Paraíso, ed Emooby, 2012
Dora Nunes Gago