A partida
A carrinha afastava-se, seguida por uma onda de poeira. Para trás ficava os retalhos da infância e da adolescência, semeados naquela terra dourada. Pedro já era um homem. Por isso, partia para conquistar o pão lá longe, onde a vida parecia sorrir. Então porquê aquele nó na garganta? Aquela teia no estômago que lhe subia até ao peito e quase o estrangulava? Aquelas lágrimas secas que lhe nasciam e morriam nos olhos? A sua terra natal já ficara para trás. Mas cada vez mais parecia mais viva e presente na memória. As brincadeiras, os amigos, a família, o namorico com a Joana…
Não, não se podia esquecer que até era um felizardo. Trabalharia, pelo menos um ou dois anos, em Espanha, na construção civil. Ainda não assinara o contrato nem tinha garantias de nada, nem sequer conhecia as condições de trabalho, mas o representante do empreiteiro parecia honesto. E nos tempos que correm quem pode exigir muitas certezas?
Ele sempre vivera com pouco. Não quisera seguir os estudos e deixara a escola assim que havia terminado o 6° ano, portanto não podia esperar grandes oportunidades. Não é que não gostasse de estudar, mas também tinha de ajudar os pais no campo e às vezes guardar o gado. Depois, o cansaço apoderava-se dele e se pegava num livro as letras esquivavam-se-lhe numa nuvem de sono, como se fossem feitas de fumo ou de vento. Além disso, ninguém o queria para doutor, nem os pais o poderiam manter muito tempo na escola, pois as três irmãs mais novas já eram despesa suficiente.
Enfim, a terra era mais madrasta do que mãe, tudo dela era arrancado a ferros e apenas bastava para assegurar a subsistência… Por isso, o sonho de ter uma casa e uma família sua tinha de ser conquistado de outra maneira. Assim, quando viu o anúncio no jornal lá no café da terra, nem pensou duas vezes. E o espírito aventureiro que habitava na sua família veio à tona. Bastou lembrar-se que o avô, natural de Juromenha, havia sido contrabandista e falecera precisamente com o certeiro tiro impiedoso dum guarda. O pai também ainda contrabandeara, mas o susto acabara por desencorajá-lo. Mudou de terra e de vida. Por isso, ele até tinha sorte, ia trabalhar legalmente, sem correr risco de vida e ganhar bem – fora a promessa do empreiteiro. Pedro desconhecia ainda a matéria da qual poderiam ser tecidas as promessas, a substância volátil que as habitava convertendo-as tantas vezes em espuma ou vento.
A planície dormia ainda e o novo dia era, também ele, apenas o eco duma promessa. A viagem parecia interminável, sustentada pela ansiedade e pelo sonho. Já tinha ouvido, às vezes, histórias estranhas de gente que emigrava e era escravizada, maltratada, explorada… mas não, isso não lhe aconteceria, eram coisas que se diziam e o povo inventa tanto! Só aos outros acontecem certas desgraças, aos incautos, aos desprevenidos ou inconscientes.
Pedro rendeu-se ao cansaço e adormeceu durante muitas horas. Sonhava com o regresso, triunfante e endinheirado, com a construção de uma casa e o casamento com a Joana.
Ausente da realidade, nem se apercebeu de que havia atravessado a fronteira e chegara à terra de todas as promessas, junto ao barracão degradado que iria partilhar com outros oito homens, durante os próximos meses, entre a ilusão e o pesadelo, o suor, as lágrimas e os sonhos vencidos em cada poente.
Dora Nunes Gago
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.