As Duas Faces do Dia, de Dora Nunes Gago
Rogério Miguel Puga
Universidade Nova de Lisboa e Escola Superior de Comunicação de Lisboa
É com muito prazer que apresento a mais recente obra literária de Dora Nunes Gago, Professora Auxiliar da Universidade de Macau, onde ensina Literatura Portuguesa, entre outras coisas, pois um professor, como a sua obra literária, tem várias ‘faces’.
A narrativa As Duas Faces do Dia (ADFD), publicada pela Chiado Editora (2014), pode ser classificada como uma novela que se revela gradualmente como uma obra por camadas, ou seja, palimpséstica, como se de um mille-feuille se tratasse, em termos de forma e obviamente de conteúdo, forçando premeditada e estrategicamente o leitor a viajar entre duas narrativas biográficas ou percursos, um já conhecido do leitor mais informado, a da vida-suicídio da poetisa Florbela Espanca, e o outro, o de Brígida, rumo à vida, esse caminho sim desconhecido do leitor. Como é sabido, Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa em 1894 e suicidou-se, em Matosinhos, aos 36 anos de idade, em 8 Dezembro de 1930, data importante na acção da obra de Dora Gago, como o leitor descobrirá. A representação dos dois percursos em ‘paralelo’ revela ser uma estratégia interessante, uma vez que é a narrativa dedicada a Florbela e aos seus pensamentos que atrasa o desenrolar do mini thriller que a obra contém, ou seja, os capítulos intercalados apresentam, à vez, as aventuras de Brígida, uma mulher que perdera a memória e a deseja recuperar, bem com as de Florbela, que deseja perder as suas angustiantes recordações e que o consegue através do suicídio.
Estamos assim perante um trio feminino, uma autora, Dora Nunes Gago, que escreve sobre duas mulheres, Florbela – a figura histórica e literária transformada em personagem, e Brígida, uma criação ficcional da autora, que ganha vida literária num mundo possível que recupera intertextualmente uma das mais conhecidas poetisas portuguesas. Os poemas da protagonista tornam-se assim ao longo de ADFD, bem com as biografias de Rui Guedes sobre a poetisa, intertextos da obra, e essa convocação literária de textos líricos de Espanca intensifica-se no final do enredo, como se de um processo de disseminação recolectiva se tratasse. Poderíamos convocar os conceitos de dialogismo de Mikhail Bakhtin, mas, numa apresentação algo informal de ADFD, bastará evidenciar a estratégia adoptada por Dora Gago para saturar a sua novela do diário e dos textos líricos (os-poemas-dentro-da-novela) de Florblela, que, por sua vez, recuperam e convocam as palavras-vivências cristalizadas pela própria escrita da poetisa-protagonista. Já os poemas de Sophia de Mello Breyner e de António Nobre são também convocados ao longo do tecido da novela e estabelecem um diálogo ou rede intertextual que enriquece o texto através de temas como a busca e a solidão. O texto revisita as várias tentativas de suicídio de Florbela e os seus sentimentos, sendo o Diário do Último Ano também citado, um texto autobiográfico iniciado em Janeiro de 1930 e terminado em Dezembro desse ano com a frase recuperada pela narradora de ADFD: “E não haver gestos novos e palavras novas” (9). Florbela sofre um aborto espontâneo em 1918, e a partir dessa data é também ‘vítima’ de uma neurose, enquanto o amor e alegria de viver desaparecem ainda a um ritmo mais rápido sobretudo após a morte do seu irmão, Apeles, em 1927, memória da infância alegre e figura onírica presente ao longo de toda obra, inclusive no final, momento em que atravessa o mitológico rio grego do esquecimento com Florbela, pelo que a dupla será a primeira a atravessar o rio Lethes de hidroavião, imagem metafórica que funde a tecnologia da contemporaneidade com a mitologia clássica.
A natureza dual do dia referido no título reflecte-se na dualidade das narrativas apresentadas, uma no passado e rumo à morte voluntária (activa), outra no presente rumo à luta pela vida (morte passiva), e não irei revelar muito sobre a obra, detendo-me apenas em alguns aspectos e temáticas que decidi partilhar aqui convosco ao celebrarmos a publicação de mais uma obra de Dora Gago. O prefácio da narrativa de que nos ocupamos, da autoria de Teresa Sá Couto, refere, desde logo, as temáticas da voz e o tempo, estabelecendo-se logo um contrato de leitura assente em duas fortes presenças, os sons, ou seja, a soundscape/paisagem acústica ou sonora (os sons que se acumulam ao longo da obra e da noite), e as cronotópicas viagens no tempo e no espaço, entre a vida da poetisa e a de Brígida, esta última estudiosa da obra de Espanca e vítima de um atropelamento homicida. Temas como a memória, a smellscape ou paisagem olfactiva (os cheiros percepcionados pelas personagens), a paisagem visual natural (Natureza, lares, sonhos), a morte e o suicídio. Também a moral e os costumes dos anos 30 do século passado – face à escandalosa mulher que fuma e se divorcia – contrastam com os actos e fenómenos sociais da contemporaneidade como mortes devido a tráfico de droga (por familiares), podendo a narrativa questionar indirectamente até que ponto Florbela se deprimiria actualmente pelas razões que a levaram ao suicídio no início do século passado. O segundo capítulo inicia a história de Brígida, leitora-fã e estudiosa de Espanca, exactamente 82 anos depois da morte da poetisa, como se as histórias das Mulheres se fundissem e não terminassem nunca. A novela pode assim ser lida à luz dos preceitos da teoria do género (os Gender Studies) através da análise de temas como a memória e a condição e a liberdade femininas num mesmo espaço geográfico, mas em tempos diferentes: uma mulher que deseja adormecer e parar de recordar, e uma outra que acorda amnésica e quer recuperar a memória e a vida, duas vivências, duas narrativas e desenlaces diferentes em paralelo. Ao longo da novela vão-se adensando ainda temas relacionados com a condição e natureza humana tais como a doença, a juventude, a introspecção e a subsequente escrita literária como terapia catártica, a infidelidade, o sofrimento, a sobrevivência, o medo, o inconsciente e os sonhos-traumas, a má-língua e a moral, as pulsões, o amor, a auto e hetero-memória analéptica e autobiográfica, a demência, a busca infrutífera a la D. Quixote, e a depressão. O leitor informado reconhece ao longo dos enredos alguns dados biográficos de Florbela Espaça, exigindo uma leitura profunda da obra um leitor informado ou culturalmente competente. O contexto histórico da acção dos capítulos (do conto) dedicados a Florbela torna-se também tempo biográfico, enquanto a descrição de uma foto-espaço de memória na página 25 convoca a estratégia da ekphrasis associada à recuperação das recordações de um passado feliz pela poetisa, acentuando a imagem do seu presente miserável. A psique feminina é também visitada ou textualizada neste exercício biográfico novelizado sobre Florbela Espanca através dos pensamentos da escritora-protagonista em torno do casamento, do aborto e da felicidade, enquanto ADFD recupera ficcionalmente os gestos do quotidiano quer da poetisa quer da jovem acamada, Brígida, cuja tese de Doutoramento sobre Sofia a levara a Matosinhos e Vila Viçosa, como se de um biombo de duas faces se tratasse, as tais duas faces do quotidiano de cada mulher, dualidade também presentes nos sonhos da jovem que são recordações traumáticas desfamiliarizadas. Aliás, à medida que as memória de Brígida regressa, através das memórias que tem do seu estudo de Florbela, “Princesa do Desalento”, os capítulos que lhe são dedicados tornam-se mais longos, adensando-se o suspense. Relativamente ao percurso-enredo de ambas as mulheres, uma frase da última página da novela poderá funcionar como chave para a interpretação das muitas suas leituras possíveis, e cito o texto para terminar a sua apresentação: “O distanciamento da mediocridade comum poderá convertê-la numa espécie de ilha – ilha que Florbela Espanca não aguentou ser.” (72).
Gago, Dora Nunes. As Duas Faces do dia. Lisboa: Chiado Editora, 2014.