LUGAR
Mário T Cabral,
Janeiro AD 2014
Nas ilhas, aceitamos, com frequência excessiva, ser “ultraperiféricos”. Ultraperiferia em relação a quê? A Lisboa? Mas também não se diz que a capital portuguesa é periférica em relação à Europa? E será o velho continente ainda o centro de alguma coisa no mundo? Haverá um centro do mundo, pura e simplesmente?
Vê-se à légua que não é um conceito geográfico – se fosse, até que não nos sairíamos mal. Está na cara tratar-se de uma catalogação político-económica que nos reduz a menos que nada. É poder, simples poder. Não o deveríamos utilizar, mesmo quando serve para extorquir dinheiro aos continentais.
É coisa mental, não real. Estas coisas, pouco a pouco, vão entranhando na pele. Um dia, sem nos darmos conta, desprezamos a nossa cultura, como já desprezámos a nossa agricultura; não toleraremos o nosso reflexo no espelho, por nos acharmos fora de moda, muito da província… e, assim, efetivamente, provincianos. A alienação vem a caminho.
Os grandes centros decisórios têm uma importância relativa, como se pode provar com o exemplo de Jesus Cristo, que nunca esteve em Roma. E não era a Índia de Gandhi periférica? E Königsberg não continua pequena, mesmo depois de Kant? O que interessa é o espaço interior que a pessoa humana habita.
Mas cuidado, que a claustrofobia é um estado mental. Muitos são os que pensam libertar-se do isolamento ilhéu entrando no Facebook como a Alice para o outro lado do espelho. O perigo aqui é letal: estar com a maioria não implica estar certo. Os lugares interiores exigem um podium. Escutar Bach não é comparável a ouvir o que está neste momento no top da MTV.
Uma das crenças mais generalizadas a todas as culturas diz respeito a um lugar donde viemos e para onde partiremos depois da morte. É de tal modo assim que sabemos que há Humanidade quando descobrimos esqueletos em posição fetal. Este lugar é identificado com a Perfeição.
Há grandes vantagens em pressupor o Céu. Para começar, liberta-nos da tirania dos grandes, que chamam “ultraperiféricos” aos mais insignificantes. Uma pessoa nas ilhas pode estar mais perto do Céu do que uma outra em Nova Iorque. Atenas deixou de ser o centro, assim como Roma, Paris, Londres, etc. – mas o Céu permanece a referência que sempre foi.
Para além disso, é um facto que gostamos de estar juntos; aliás, os problemas com o lugar certo estão diretamente relacionados com a relação. Sem o Norte espiritual que o Céu representa, andamos todos perdidos, por aí, cada qual em sua capelinha, muito convencidos de sermos o centro do mundo… mas ignorados por quase todos. O Céu congrega.
Voltando à terra, outro vício das ilhas, pior ainda do que o primeiro, é o de nos pormos em bicos de pés por dá cá aquela palha. Enchemos parangonas com este e aquele açoriano que conseguiu este ou aquele feito de dimensão universal. É uma crise de adolescência que faz ruborizar de vergonha. É um grandessíssimo dum complexo de inferioridade.
Para que é que hão de saber no mundo que nós existimos? Lá estamos nós a ser ultraperiféricos, isto é, provincianos. Se a nossa bitola for o Céu, não precisamos do aval de ninguém. Isto tem a ver com a liberdade, entenda-se. E, claro, com a excelência.
Ou seja, e para concluir: o mundo cabe dentro do nosso quintal e a história da Humanidade é um nada dentro do nosso espírito. Não é preciso irmos à procura da felicidade fora daqui, pois até corremos o risco de a sumirmos. Dizia Heraclito que os deuses também estão na cozinha.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.