O ACORDO ORTOGRÁFICO ( II )
CARLOS ENES
Tanto quanto pude apurar, não havia uma ortografia oficial da língua portuguesa até ao século XIX. Cada pessoa escrevia segundo a sua lógica e a moda dominante dependia, em grande medida, do prestígio do escritor que estivesse em voga no momento.
O que parece ser evidente é uma tendência para a simplificação ortográfica. As reflexões sobre a ortografia portuguesa são muito antigas e sempre se digladiaram os defensores do critério etimológico das palavras com os do critério fonético.
Sem pretender uma análise exaustiva desta matéria, apresento apenas alguns exemplos para captarmos momentos significativos que precederam a elaboração do acordo ortográfico.
Recuando ao século XVI, Jerónimo Cardoso, considerado o primeiro dicionarista português, exclui do alfabeto o h e o k. Na mesma linha, João de Barros, na sua Gramática da Língua Portuguesa, publicada em 1540, defende o critério fonético face ao etimológico, eliminando as chamadas consoantes ociosas: “A Primeira e principál ręgra na nóssa orthografia, ę escreuer todalas dições com tan¬tas leteras com quantas a pronunçiamos, sem poęr consoantes oçiósas: como uemos na escritura italiana e françesa”.
Nenhum dos dois autores referidos usa o c mudo em muitas palavras. Posição semelhante foi assumida por Joam Franco Barretto e por Bento Pereira, no século XVII, que afirmou: “Para que guardemos certeza, ou verdade em nossa escritura, assim devemos escre¬ver, como pronunciamos & pronunciar como escrevemos. D’outra maneyra será nosso escrever mentiroso, porque se mente no fallar, quem falla contra o q̃ entende, tambem mente no escrever, quem escreve contra o que pronuncia. E o bom Portu¬guez para ser totalmente verdadeyro, deve ter verdade no escrever, como a tem no falar”.
Posição diferente foi sustentada por Pedro de Magalhães Gandavo e por Alvaro Ferreira de Véra, nos séculos XVI e XVII, respetivamente, ambos defensores do conhecimento do latim como suporte para uma escrita sem erros.
O século XVIII trouxe novas achegas a esta problemática com Luis António Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, em 1746. Para ele, a simplificação da língua servia para reduzir o analfabetismo, para aprofundar a democratização cultural e possibilitar que Portugal acompanhasse o progresso científico e entrasse na modernidade. O critério etimológico devia ser substituído pelo fonético, com regras ortográficas mais realistas e criteriosas. Com Verney dá-se a rotura com a tradição ortográfica defendida pelos já referidos Gandavo (1574) e Véra (1631).
Para Verney, as letras mudas deviam ser eliminadas, como era o caso da letra s inicial em scena (cena), ou do c em acto (ato) e do h de homem. O mesmo critério foi seguido para a grafia da letra g antes de consoante, como no caso de magnífico, mas havia exceções como Magdalena que passaria a Madalena. Noutros casos manteve a regra do uso, como por exemplo em douto e docto, onde a vogal u ou a consoante c deveria ser mantida.
Os critérios que ele elaborou não deixaram de ser contestados, tendo como grande opositor o jesuíta José de Araújo, sob o pseudônimo de Frei Arsênio da Piedade, que deu à estampa as Reflexões Apologeticas, 1748, criticando todas as cartas de Verney. Este, por seu turno, replicou com Respostas às Reflexoens.
Apesar do apelo à mudança, o século XVIII representou o apogeu máximo do primado da etimologia que foi defendido pela Academia Real das Sciencias de Lisboa. Na sequência deste debate, que envolveu vários sectores da sociedade portuguesa, houve uma tentativa de estabilização da língua portuguesa através da publicação do primeiro volume do Dicionário da Academia da Língua Portuguesa relativo à letra a, no ano de 1793, mas sem qualquer desenvolvimento posterior.
Como se pode constatar, o tema foi sempre alvo de polémica entre os vários autores, mas parece haver uma tendência de abertura à mudança entre humanistas e iluministas.
Sobre o Autor: CARLOS ENES é Professor e historiador.
Nascido na Praia da Vitória, Ilha Terceira,Açores
É Deputado da República em representação dos Açores.