CÂNONE
Mário T Cabral, 23 de Março AD 2014
O Cânone Ocidental, do judeu agnóstico americano Harold Bloom, vai na quinta edição portuguesa, o que é notável, pensando no nosso mercado e no tipo de livro. Parece que os alunos portugueses estão a ser aconselhados a lerem-no. À partida, é bom, se houver distanciamento crítico em relação ao critério subjetivo do autor; porque, não havendo, é mais uma provincianice, agora não às modas francesas, mas mesmo assim a estrangeirismos nefastos à cultura efetivamente ocidental; que o cânone de Bloom é sobretudo anglófono.
Trata-se duma leitura muito proveitosa, em diversos sentidos. Para começar, há o ataque desassombrado às modas relativistas do nosso tempo, que tomaram conta das universidades e, a partir delas, dos liceus e escolas em geral. Bloom chama os bois pelos nomes: a ideologia comunista, que classifica as obras a partir do seu contexto sócio-político-económico (a doença do romance histórico não há modo de nos abandonar; nela, interpreta-se o passado a partir de pressupostos marxistas); as hermenêuticas “a la française”, ou seja, os desconstrutivismos todos a que temos direito (Barthes, Lacan, Derrida, Foucault…), que são filhos de Freud-Marx-Nietzsche; as feministas que, na América, vão ao ponto de exigir que a Bíblia chame a Deus He/She… Para toda esta gente, a cultura não vale por si, pois é uma máscara do poder do Homem (não mulher), branco e ocidental. Assim, colocam ao lado dos verdadeiros génios autores/as que não valem nada e que apenas obedecem a cotas morais, e não estéticas.
Porém, o livro escorrega no gozo que esta luta lhe traz, o que é compreensível mas perigoso. A ideia de um cânone — e neste caso específico para a Literatura — é um imperativo de todas as épocas, em especial nesta, pelas razões apontadas. Precisamente por isso, não pode ser baseado no gosto particular, com o risco de cair, como cai, no mesmo relativismo que critica, abrindo brechas para o inimigo entrar na cidadela; é tão tentador chamar imperialista a esta interpretação! Ninguém duvida da genialidade de Shakespeare, que fará parte de qualquer cânone universal que se preze… mas daí a considerá-lo o centro de um cânone onde não se encontram analisadas nem as tragédias gregas nem Dostoievski vai um abismo de cortar a respiração. E porque é que Freud está dentro? Uma coisa é Bloom considerar que a psicanálise é ficção, outra é Freud ser escritor. Se Freud faz parte desta lista, porque não está nela Platão (até está, mas “en passant”)? O autor não argumenta e chama freudianamente invejosos aos que discordam, entre eles Tolstoi e Eliot.
Valores formais? Nicles! Privilegia, no caso da prosa, as personagens, o que é defensável. Nada supera o tratamento da alma humana no teatro e no romance; e mesmo nos outros géneros, incluída a poesia. Mas o ser humano não é apenas vil e cínico, tipos preferidos por Bloom. Este gosto é muito… niilista, desconstrutivista! Claro que a literatura genial revela o pior da alma humana: o mal, as tentações, mostrando que não somos anjos; mas nunca nos reduz ao nosso inferno, porque nós também desejamos a relação pura, o além, um lugar de paz. Deste modo, Bloom acaba por revelar, sem querer, o seu critério, que é… mais um entre os tantos que critica, nesta era caótica (designação dele).
Até pode ser um cânone… americano. E nem chega a ser o que pretende: uma bitola puramente artística. Talvez porque a arte pela arte seja um logro. O que interessa é a definição de HUMANO; e é neste campo que Bloom se irmana daqueles que tanto o irritam. Freud explica.