[Enquanto sonhava alto, ouvi gritos no céu]
Enquanto sonhava alto, ouvi gritos no céu:
«Venham amigas! Venham amigas!
— suplicou o vento apressado
às nuvens que dormiam no céu.
Venham reanimar a terra distante,
desmaiada pela anemia da sede!…
Venham ressuscitar as feras emagrecidas
e as árvores mirradas.»
A nuvem pequenina desatou a correr,
e muitas se lhe seguiram velozes.
O vento empurrava-as com toda a força,
e, porque muitas recusaram partir,
as nuvens desinstaladas voavam baixinho,
tocando nos cabelos das colinas pequenas.
Quando alcançaram a terra enferma,
as nuvens enviaram-lhe as gotas mais grossas,
gritando estas palavras:
«Ide encher a terra de vida!
Fecundai-a com paixão,
para que os canários voltem a saltitar
e as flores tornem a sorrir.
«Realizai a vossa obra
dizendo esta mensagem:
«Ninguém vive para morrer,
ninguém expira sem ganhar um troféu.
«Até que a escuridão ameace
nas bermas escorregadias dos abismos profundos,
há sempre alguém, lá ao longe,
pronto para socorrer e consolar…
«Da tortura do trigo nasce o pão,
e da morte da semente, a floresta.
Do sofrimento brota o consolo,
e do sucumbir, o paraíso da vida.
«A existência não é um absurdo tenebroso,
mas o paradoxo fascinante,
o prelúdio da fantasia real
que jamais acabará.»
Ricardo Tavares, As Gotas, Angra do Heroísmo, ed. do autor, 1996