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Este conteúdo fez parte do "Blogue Comunidades", que se encontra descontinuado. A publicação é da responsabilidade dos seus autores.
Imagem de “Do fundo do abismo onde caí”  – Dora Nunes Gago
Comunidades 14 mai, 2014, 04:41

“Do fundo do abismo onde caí” – Dora Nunes Gago




(Paul Klee 1879 – 1940)
  
“Do fundo do abismo onde caí”[1]


Se à revolta pudesse corresponder uma imagem, seria, sem dúvida, o rosto de João.
     Era sempre o primeiro a acordar, o primeiro a exigir que lhe empurrassem a cadeira de rodas para a sala, pois não suportava a solidão branca do quarto de dormir.
     Um grave problema ocasionado pela infecção de úlceras varicosas havia-lhe determinado a amputação das duas pernas. Por isso, recusava-se a entender o sentido da vida. O seu tronco desmembrado parecia-lhe profundamente ridículo, uma espécie de árvore cortada ao meio, assombrosamente suspensa no vácuo.
     Fora um juiz bem sucedido. Um homem alto, bonito, charmoso e sedutor, acima de tudo. Passara por três casamentos, três separações, quatro filhos e incontáveis aventuras amorosas. Construíra uma carreira sólida, com alicerces de aço. Um homem indestrutível que decidia a vida dos outros. A sua sentença era sempre soberana, umas vezes mais justa do que outras.”Dura lex, sed lex” – A lei era dura, mas era lei – sempre fora esse o seu lema, na vida e no tribunal. Outro era: “Alia jacta est” (a sorte está lançada). E a isso se resumira a sua vida.
      Aos filhos nunca concedera muito do seu tempo e mal conhecia os netos, confundindo-lhes sempre os nomes. Por isso, não podia de modo algum estranhar a ausência de visitas. Os filhos trilhavam agora o caminho que ele já havia percorrido até ao final. Dois deles eram advogados, um empresário e o outro comissário de bordo. A menos de meio da vida, ainda corriam feitos loucos atrás dos sonhos e das ambições. Não haviam ainda sentido o sabor amargo da derrota, da insignificância de alguns dos feitos considerados grandes.
      Ah, se pudesse voltar atrás, seria bem outra a estrada a seguir! Aproveitaria todos os pequenos momentos, saborearia as coisas verdadeiramente grandes da vida: um longo passeio na praia, uma corrida no parque, uns copos com os amigos, uns passos de dança a fechar a noite.
      Prisioneiro daquele abismo, com dores ainda nos membros recentemente amputados, as horas arrastavam-se, lentas, prenhes do longo rastejar dos anos. Antes, corria atrás do tempo, como um corcel endoidecido e ele nunca chegava, não era suficiente para tudo.
       Agora sobravam-lhe horas, dias e meses e já não lhe competia decidir o que quer que fosse. A sua última grande vitória fora conseguir controlar a cadeira de rodas. A vida resumia-se ao vazio, tão oca, incompleta e amputada como ele próprio. Por isso, não valia a pena recordar nada, o homem que fora extinguira-se, apagara-se como uma velha beata gasta de um cigarro fumado há muito.
       Aproximou-se do computador e decidiu escrever ao filho mais velho. Um e-mail longo, ou talvez apenas três palavras, uma espécie de grito de socorro, de apelo, enraizado numa escuridão tão profunda que os meus raios jamais conseguiriam tocar:
       “Do fundo do abismo onde caí….” 
      De súbito parou, desistiu. O despenhadeiro era demasiado fundo, não havia regresso nem ascensão possível. Restava-lhe conformar-se com o seu estatuto de miserável Ícaro mutilado.

Dora Nunes Gago in A Oeste do Paraíso, Emoody, 2012 (adaptado)
[1] Miguel Torga, “Maldição”, Diário XIV, 1987
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou:Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005;A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. 

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