Literatura, identidade e política, agora
Vamberto Freitas
Quando Habitante irreal, o romance do escritor Paulo Scott, natural de Porto Alegre, foi publicado no Brasil em 2011, a crítica recebeu-o com os maiores elogios, destacando quase sempre um regresso da narrativa de fôlego, em que as grandes questões do nosso tempo são encaradas por uma nova geração que atingia a sua idade adulta a meados dos anos 80. Dos seus aspectos formais ou estruturais, falarei mais adiante, mas ressalve-se a justeza dos primeiros apreciadores deste romance no seu próprio país. Alguns dos postulados temáticos do pós-modernismo literário no seu melhor estão aqui presentes, assim como certo realismo sujo/dirty realism, que um dia foi utilizado para caracterizar a escrita de Raymond Carver e Richard Ford, entre outros menos conhecidos, nos Estados Unidos, essa prosa de herança mista ou transatlântica de alguns ficcionistas contemporâneos. O revisionismo da história recente brasileira, e por inferência, directa ou indirecta, da história de mais mundo que nos levou à situação actual sem muita diferenciação em qualquer parte, a tentativa do protagonista de nome Paulo (um piscar de olho, talvez, lembrando-nos a presença do autor ele próprio como interveniente na trama) se colocar como ser activo nessa realidade do seu tempo e da sua geografia, nesse espaço natal que lhe é referência íntima, o jogo de tempos ficcionais e de espelhos identitários, dele e de todos outros personagens maiores, as referências culturais de todo o género que situam e envolvem as memórias dos leitores — faz deste romance tanto um regresso ao passado, às questões primordiais da literatura ocidental, como se torna um relato ambíguo dos que tentam sair do labirinto opressor imposto pelos deuses-homens num desafio sem fim à nossa humanidade.
Habitante irreal tanto retrata mundividências quase sempre trágicas, nas novas circunstâncias de fim de século e início de um novo milénio (em que a tragédia tantas vezes se confunde com a comédia, e vice-versa) como é um mergulho na desumanidade que ora ignora uma família índia vivendo miseravelmente à beira de uma auto-estrada rio-grandense, ora chora e ri com uma geração perdida nas catacumbas sociais de uma Porto Alegre ou de uma Londres (por onde este romance também se movimenta), aqui quase só vista à noite quando os adamastores terrestres e mesquinhos da nossa era saem à rua em roupa de marca. Primeira ironia: Paulo afasta-se da política aos 21 anos de idade em 1989 como militante do PT (Partido dos Trabalhadores), ainda antes de ele chegar ao poder em Brasília, mas já conquistando influência a nível municipal aqui e ali. Isso acontece numa das reuniões do partido quando Paulo se dá conta que não tem estômago para tanta falsidade, calculismo, corrupção e o trepar a qualquer custo com um eventual cargo político como prémio. Partido dos Trabalhadores, ou apenas metonímica da ascensão por qualquer meio de uma nova geração, que, como disse o autor numa entrevista posterior, é uma representação de si próprio e de toda uma geração falhada, que outra coisa não faz senão dar continuidade ao passado? O narrador constrói uma história de desilusão, sua e irremediavelmente geracional, do seu afastamento da acção de rua ou de bastidor, e ao contar essa mesma história, precisamente, faz do romance uma peça artística que nunca deixa de fora o essencial, o coração humano em busca de felicidade e descanso, a razão como ponto de partida para a revolta e denúncia de tudo o que bloqueia esses anseios ou desejos de cada um dos seus seres inventados, de nós. Parece um romance escrito sob a influência de técnicas cinematográficas ou de teatro, cada figurante de inesquecível presença, cada descrição e aparência deles uma abertura ao seu interiorismo ante os seus espectadores/leitores. Aliás, a dada altura na narrativa uma série de cenas na baixa de Porto Alegre vira exactamente o “teatro” aqui sugerido. O protagonista, filho de um casal da classe média alta que não para de andar em viagens-outras, acaba de onde começa na sua cidade, agora ferido ainda mais pelo que a vida lhe trouxe e ensinou, o tempo cíclico de alma que no seu percurso acumula as mais significante perdas, esse ciclo de uma vida conscientemente, interminavelmente auto-examinada.
Numa viagem por uma auto-estrada, Paulo encontra uma menina índia de nome Maína, de catorze anos de idade, perto do seu acampamento à beira da estrada a recolher folhas soltas de jornais e revistas, para e conversa com ela, quer saber onde e como vive, levando à abertura de uma amizade, e depressa a uma relação íntima, que resulta no nascimento de Donato. Todos os que se relacionam com o protagonista questionam a sua prudência dado as diferenças entre eles, as suas idades, e insinuam o distanciamento, digamos, do lugar que cada um ocupa na sociedade. Cedo Maína se suicida depois de nascer filho, e Paulo ausenta-se em Londres onde vive o negrume de “imigrante” clandestino numa cidade europeia da nossa época, onde à beleza do seu passado e aparente prosperidade se junta a criminalidade nas suas margens mais ou menos disfarçadas. Esqueçamos os infindáveis momentos de drama e comédia amarga uma vez despoletado o destino destes e de outras personagens. Pelo meio temos a representação de tudo o que Paulo considera ser a história do seu país, a violência real e psíquica exercida sobre sobre os povos indígenas, história esta que apenas simboliza todos os males maiores de uma sociedade como o Brasil, a desilusão política tornada também metáfora abrangente de tudo o que constitui a realidade passada e actual, sem saída à vista. O narrador olha o labirinto em que está presa a humanidade à sua volta, uns acomodados e felizes nos corredores das suas vidas, outros desesperadamente em busca de uma saída. Donato, criado e educado por outro casal, outrora activista e estudioso das questões do índio, acabam eles também por seguir as suas carreiras, a noção de sucesso, na academia ou mundo empresarial, a sua obsessão maior. A retórica política dos outros não passa disso, de palavreado politicamente correcto e oco. Entretanto, o que sobressai com a mesma força na prosa de Paulo Scott é um vasto e colorido mosaico da sociedade no seu todo. O recurso a um referencial cultural, popular e erudito, que marcou a nossa época transfronteiriça em anos recentes faz parte da imagística e mítica já tornada universal. Habitante irreal faz o leitor sair de uma questão localizada, regional ou nacional, e permanece, isso sim, numa poética de todo universalizada, numa poética de linguagens simultaneamente identificadas com os temas e subtemas da realidade brasileira e do que move e comove o coração humano em qualquer outra geografia.
“Sente-se – diz o narrador de um momento de Paulo no seu breve exílio da Inglaterra – estranho, não é apenas a tontura do vinho, são os sonhos e a espera que não consegue suportar. Tanta pressa, a sua pressa. Tanta que o faz estagnar. Não tem feito questão de pensar. É a primeira vez que para e dá atenção a algo relevante desde que chegou a Londres. Não sabe qual luta vale a pena. Afinal onde está o mil novecentos e oitenta e nove actual senão em Londres, Nova Iorque, Tóquio? A vida está passando. Aos vinte e pouco e se achando um velho, embora não velho o suficiente (se achar um velho não costumava ser o mesmo que agora nada importa, mas tem sido) . E o vinho pegando, não há droga que desmonte igual. Pensa. Ela o mandou embora. A fragilidade de Maína nunca foi fraqueza. Inapto para sentir paixão de verdade, como alguns parecem sentir sem fazer força… Faça o quanto faça não consegue mais se envolver”.
Para além do mais, e como já foi sugerido, o jogo de tempos ficcionais de Habitante Irrealtransporta-nos para os anos do Brasil pós-ditadura, questionando tudo o que permite a continuidade de uma rica historicidade de promes
sa e falhanço. Para além da complexa questão étnica de um país-continente das Américas, não leio este romance só pelo que me pode esclarecer sobre a arte literária brasileira de uma nova geração, mas leio-o pelo que representa na continuidade artística em língua portuguesa, ou seja, porque faz parte da nossa tradição, e se mudarmos o nome do país o nosso “choque de reconhecimento” será mais ou menos o mesmo. Há, de facto, qualidades ou vontades que aparentam ser imutáveis em nós – a essencialidade de nos recriarmos, de nos reinventarmos, na beleza da arte, a catarse civilizada suas diversas manifestações. Nada indica que a grande literatura, em qualquer forma ou género, está de partida.
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Paulo Scott, Habitante irreal, Lisboa, Tinta-da-China, 2014.