Texto de Apresentação do Livro: "DOS VULCÕES AO DESTERRO",João Câmara
por Alzira Maria Serpa Silva
Foi uma honra e um prazer receber o convite para apresentar o último livro de João Gago da Câmara. Porque fomos colegas e amigos na empresa onde ambos crescemos – RTP – o João mais na rádio, eu mais na televisão – e porque há anos lhe percebi esta chama ainda hoje acesa na senda cultural que uniu Açores e Santa Catarina. E ainda porque é sempre saudável resgatar do passado a força que o empurrou até aos nossos dias. E é disso que trata este livro. Obrigada, João, pelo convite e as minhas desculpas por não estar aqui presencialmente. Por razões de saúde, que me retêm no Faial, com grande pesar. Mas vamos ao que interessa: o livro.
Dos Vulcões ao Desterro é uma viagem de João Gago da Câmara pela epopeia marítima dos açorianos no século XVIII, entre os Açores e Santa Catarina, vista pelos olhos de historiógrafos, pesquisadores, antropólogos, arquitetos, músicos, populares, e pelas lentes do próprio autor.
João Gago da Câmara desdobra-se nestas páginas: regista a informação como jornalista, reage ao ambiente e aos seus interlocutores como ser humano emotivo e deslumbrado pelo acolhimento recebido e pelos vestígios da cultura açoriana encontrada a cada passo em doze dias que ele próprio apelida “de paixão”.
Quase todos reconhecemos o fascínio que o Brasil exerce no imaginário açoriano. As circunstâncias ditaram que fosse o primeiro país para onde os nossos antepassados emigraram, pouco mais de um século depois do povoamento das ilhas, e com destinos distintos ao longo dos séculos – Maranhão, Pará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo.Santa Catarina e Rio Grande do Sul com a particularidade de terem sido colonizadas por açorianos cansados da pobreza das ilhas porque, como escreveu Eduardo Lourenço, “toda a colonização é uma gesta de pobres para deixar de o ser”.
Hoje o fascínio por esse imenso país ainda vive não apenas no imaginário açoriano, mas no todo de Portugal, seja pelo reencontro com raízes da nossa cultura, seja pela hibridez exótica que a transformou, seja pelo alimento revigorante para a nossa autoestima de portugueses intrépidos que deram novos mundos ao mundo.
Nos Açores, a saga dessas viagens que Almiro Caldeira e Luís António Assis Brasil imortalizaram em romances históricos de rara sensibilidade, suscitou, quando conhecida, uma ancoragem de respeito pelos nossos bravos, corajosos e perseverantes antepassados.
João Gago da Câmara, profissional consciente do enquadramento que o jornalista deve fornecer ao destinatário do seu trabalho, começa exatamente pela provisão régia de D. João V, em 1746, mobilizadora do primeiro grande ímpeto de emigração açoriana. Contextualizadas as promessas da coroa portuguesa que atraíram os açorianos, assolados pelos cataclismos ilhéus, o autor inicia o seu relato pessoal na aproximação do seu voo a Santa Catarina, que ele descreve assim: “Um relevo acidentado verde vivo em gradientes a descer montanhas abaixo, com árvores frondosas a sombrearem o mar, deixa passar uma imagem forte e a noção de que a natureza ali é um elemento catalisador da felicidade; e as praias harmoniosas, considerando-se as suas enseadas e prainhas debruçadas em aventais sobre as águas que banham as baías da ilha, num azul único, transparente, partilham os seus areais dourados com um deslumbrante fundo marinho que complementa a extraordinária visão aérea. Associámos esse relevo ao das ilhas açorianas e atribuímos essa orografia, tão parecida à das ilhas do paralelo 38, à razão de o açoriano escolher este local para destino definitivo.”(p. 55)
“Éramos chegados” – escreve na página seguinte – ao coração da história real, o da senda emigratória açoriana que viaja connosco das origens até aos nossos dias.” Ele próprio anuncia, nessa chegada, a sua intenção primeira de resgatar “tanto quanto possível, o melhor de mais de dois séculos e meio da nossa história de além-mar”, “num jornalismo de ternura e saudade”. E antecipando já a próxima despedida interroga-se: “E como é possível deixar de lembrar os sorrisos rasgados atrás das vidraças das janelas das casas de gente açoriana, a fazerem-nos sentir como mais um filho em visita a uma casa de familiares? Os genes estão ali, a uma distância de onze horas e meia de voo do jato descolado da terra dos vulcões.”
O homem e o jornalista, indissociáveis nestas páginas, sentiram, no primeiro percurso, as dificuldades dos primeiros colonos: “A pé descalço ou caminhando sobre improvisadas e desconfortáveis alpercatas, em frios chãos térreos de velhas casas de colmo, ali se viveu à boca da fogueira, onde também se cozinhava o comer tirado dos quintais e das águas próximas através das tradicionais tarrafas. As chamas ténues das lareiras rústicas desse longínquo destino foram certamente bem mais acolhedoras que as expelidas das narinas dos vulcões ativos das ilhas açorianas do nascimento, que, aterrorizantes, impeliram os açorianos para as penosas partidas sem regresso.” (p. 60)
Este desígnio de partir que sempre acompanhou os ilhéus dos Açores, compreendeu-o bem João Gago da Câmara. Por diversas vezes a sua sensibilidade ressalta no verbo, roça a frase, desmonta a armadilha da objetividade e entranha-se nas vivências de Santa Catarina numa descoberta apaixonada. Por vezes, confessa o seu encantamento: “O coração como que amolece e se deixa abarcar por esta gente enormemente boa que sempre recebe alegremente, enchendo-nos de sorrisos abertos e francos. E quão bonito é constatar que o sangue teve a força de atravessar séculos de história, transportando a identidade cultural de um povo, este bonito povo açoriano.” (p. 62)
Não são apenas os sorrisos que o atraem, mas também as ruas, o movimento, as cores, a arquitetura: “a antes chamada rua bela, foi, com efeito, uma das ruas da minha paixão. Adorei o bulício próprio, o pulsar desta artéria, sempre viva na estridência dos gritos dos populares cambistas de dólares e da gente bonita que nela circula com aquele sorriso impregnado de simpatia e de uma informalidade que conquista.” (p. 66)
João Gago da Câmara entrevista estudiosos e populares, mergulha no cadinho (ou caldeirão, como também lhe chamam) culturalde Santa Catarina, onde índios autóctones, negros africanos, brancos europeus se miscigenaram, abrindo novas veias oxigenadas até ao coração desse país a que chamamos irmão.
Regista opiniões e saberes, põe a palavra na voz das gentes, e cada um contribui, com a simplicidade com que os brasileiros descomplexificam os temas mais imbricados, para o conhecimento aqui do que foi a nossa história lá e do que é hoje Santa Catarina, a bela Florianópolis, mais conhecida por Floripa entre os seus. Habitantes da Lagoa da Conceição, vendedores do Mercado Municipal, descendentes de escravos, o Professor Nereu Do Vale Pereira, criadordo Ecomuseu Açoriano no Ribeirão da Ilha, a fundadora e ensaiadora do Grupo de Danças e Cantares Açorianos de Biguaçu, Ana Ana Lucia Coutinho, os Maestros Osvaldo Ferreira de Melo e Hélio Teixeira da Rosa, o Arantinho do Pântano do Sul, e muitos outros clareiam, pela pesquisa ou pela preservação de factos e lendas contados pelos avós, essa história ainda de contornos nublados que foi a chegada dos açorianos ao Desterro bem como a sua sobrevivência. E o jornalista faz mais: embrenha-se nas tradições legadas pelos açorianos, umas pacíficas como o culto ao Divino, novenas e procissões, outras polémicas, como o boi na vara ou a farra do boi – uma espécie de tourada em que pode existir violência ou apenas brincadeira entre humanos e animais.
Mas a herança açoriana é muito mais vasta e João Gago da Câmara não a esquece: é revisitada nos engenhos da pesca e da agricultura patentes nos espaços etnográficos, resiste na música, na gastronomia, no artesanato, na arquitetura, nas brincadeiras infantis, e é amplamente divulgada na literatura oral. Os exemplos são numerosos, os pesquisadores também; era impossível entrevistar todos os que tinham conhecimentos a partilhar, mas o trabalho reuniu uma diversidade enriquecedora que a RDP ajudou a difundir pelo mundo e que agora este livro vem oferecer, em forma de narrativas sob a perspetiva das culturas locais.
A linguagem é leve, atrativa, solta, pontilhada de tonalidades literárias. É um convite a uma viagem que sempre apetece empreender ao Brasil meridional. Esse Brasil que acolheu e albergou as gentes açorianas exaustas da dureza da vida e de uma viagem atulhada em grandes e fortes provações. Esse Brasil onde as promessas da Coroa não chegaram, pelo que o seu trabalho constituiu o único passaporte para uma vida melhor. Esse Brasil onde vingaram e deram descendentes multiplicados por muitas combinações, hoje ainda capazes de afirmar: “eu sou uma açoriana de 260 anos”. Disse-o Lélia Nunes, ao que Onésimo Teotónio Almeida rematou: “muito bem conservada!”.
São estes pedaços de nós que encontramos, como que por acaso, inscritos num filão a que comummente se chama identidade. Talvez nos tragam, como propõe Giddens, uma segurança ontológica. Ou, como afirmou Whitehead, talvez precisemos dos nossos “vizinhos” “algo suficientemente semelhante para ser compreendido, algo suficientemente diferente para provocar a atenção e algo suficientemente grande para causar a admiração.” Ou, eventualmente, este regresso ao passado seja a motivação necessária para acrescentar a nossa autoestima coletiva, encolhida entre a globalização e o regionalismo. O mito de um passado corajoso pode ser o emblema a pendurar na lapela da nossa vaidadezinha em dias de nevoeiros sociais aqui nas ilhas e de futurismo interrogado em Santa Catarina, por contágio da atualidade no Brasil. E se a consciência da fragilidade da nossa condição humana nos lançar para esta fraternidade confortável de uma casa comum – a língua – e de uma cultura de similitudes – que prolonga a nossa dimensão no mundo?
Considerações várias podem ser tecidas, para fundamentar este relacionamento secular e as suas expressões mais vivas. Mas essa é uma conversa para depois da leiturade “Dos Vulcões ao Desterro”. João Gago da Câmara fez a viagem ao contrário. Trouxe um pedaço de Santa Catarina – o Desterro do século XXI – aos Açores – Vulcões do século XXI. Importante raiz partilhada.
Um convite irrecusável.
Alzira Silva
Jornalista