O muro
Naquela noite a sua vida mudaria para sempre: Liu ensaiou mais uma vez o salto libertador. Medira dezenas de vezes aquele muro verde e estreito com o olhar. Namorara-lhe cada aresta nas últimas noites e madrugadas, no pouco tempo que lhe sobrava quando já tarde regressava a casa.
A loja onde trabalhava estava na eminência de fechar. Seria difícil encontrar outro emprego e o dinheiro era escasso. Não conseguiria sobreviver mais de duas semanas sem um salário, pois as economias eram praticamente inexistentes. Sabia que ali na ilha de Henquin estavam a terminar a construção do campus universitário da Universidade de Macau. O espaço fora arrendado à China, por isso, do outro lado do muro já era Macau: outras leis, outras vidas, outras oportunidades, talvez um bom emprego, com um bom salário num casino. Porque não? Para além dos trabalhadores das obras, havia já alguns alunos e professores a viverem daquele lado da ilha e já havia autocarros frequentes para Macau e para a Taipa. Seria fácil apanhar o autocarro e depois em Macau tinha alguns familiares afastados que poderiam talvez ajudar nos primeiros tempos. Contava com isso, sonhava com a mão amiga que se havia de estender e atenuar as consequências da clandestinidade.
Àquela hora, toda a gente estaria recolhida em casa ou até a dormir e seria ainda possível apanhar o tal autocarro. Os motoristas nunca faziam perguntas e os seguranças deveriam estar a comer ou a dormitar com aquele frio tradicional que iniciara o ano da serpente. “Ia ser fácil, tão fácil que ia lamentar ter perdido tanto tempo e ter tido tanto receio… Longe iam os tempos em que da China continental muitos desesperados se dirigiam para Macau a nado e acabavam abatidos por tiros de canhão, muito antes de pisarem terra. Agora os tempos eram outros: claro se fosse preso e expulso ficaria metido em grandes problemas, mas não “ia ser fácil, tão fácil…”. Então por que lhe disparava o coração no peito daquela maneira? De onde vinham aqueles suores frios que lhe escorriam pela testa e pelas mãos? Tinha de ter as mãos bem secas para se agarrar ao muro. Afastou-se, respirou fundo, tomou balanço, calculou matematicamente o salto e precipitou-se muro acima. Em poucos segundos estava do outro lado, caído e com uma perna a doer-lhe tremendamente. Não, não podia ter partido nada… talvez sido só do impacto. E agora precisava de se colar às poucas árvores existentes de forma a afastar-se dali, para depois chegar à paragem de autocarro mais próxima. Queria respirar fundo e suspirar de alívio, mas decidiu que só dentro do autocarro o faria.
Na paragem estava apenas mais um casal jovem. O autocarro parou e entraram todos. Trazia consigo alguns Hong Kong dólares para as despesas iniciais. Sentou-se, encostou-se e sentiu-se feliz e descontraído como se fosse mais um estudante que ia dar um passeio até à cidade. O autocarro atravessou lentamente o túnel e quando estavam mesmo quase do outro lado, parou. Entraram três polícias que pediram identificação a todos os passageiros…então, foi nesse momento que o sonho desabou: nem visto, nem documentos. Imediatamente o levaram para o interior do carro da polícia. Era aquele o último muro contra o qual esbarrava, o muro que lhe destruía os sonhos e a esperança de um futuro diferente.