A Balada do Ouro Nazi
Foi apresentado na passada Quinta-feira, em Ponta Delgada e começo por dizer que foi um gosto que me tenha sido antecipada a sua leitura. Hélder Medeiros, que eu já tinha lido em Solução Primária e Elemento Alpha – A Origem, brinda-nos agora com esta Balada do Ouro Nazi, um policial revelador de uma profunda imaginação e de uma excelente memória narrativa.
Tenho de repetir aqui o que já escrevi sobre o autor.
Hélder Medeiros é para mim o exemplo acabado de como se pode ser profundo e irreverente, culto e descontraído, rico de sentimentos e simples no trato, a provar que não há amor sem humor. Nem é preciso dizer por que motivos Helfimed é o sucesso que todos sabemos. Não posso deixar de referir aqui o êxito do seu America First, Azores Second que em poucos dias vai a caminho de duzentas mil visualizações, aliás na sequência de outros que já ultrapassaram um milhão de visitadores internautas.
Hélder Medeiros é a prova de que o “regionalismo universalizante” encontrou novos caminhos numa geração de jovens que orgulham os Açores, na literatura, nas novas tecnologias, na música e na arte. A projecção dos Açores não se faz dizendo ou discursando. Faz-se na criação e na inovação que não conhece fronteiras neste mundo globalizante, mas cada vez mais identitário e orgulhoso da individualidade.
No caso do livro Elemento Alpha – A Origem (edição VerAçor 2013),
toda a teia do enredo policial que se estende dos Açores aos Estados Unidos, que passa pela Europa e que fala de fenómenos e minas espalhadas por todos os Continentes, a velocidade da narração, a emoção do imprevisto e a força do diálogo não tiram, nunca, ao leitor a oportunidade de pensar no que está subjacente a toda a obra: A vida na Terra é fruto de um acto divino, ou a nossa existência é um mero acaso?
Agora, com este A Balada do Ouro Nazi, numa edição Letras LAVAdas – e vencedor do Prémio Literário Letras em Movimento – Hélder Medeiros leva-nos a uma Aventura centrada numa Ponta Delgada ficcionada, com acção que desce às Sete Cidades, sobe ao Pico da Vara e se cruza com a pacatez do Faial da Terra. Ouro, navio, espiões, polícia e investigadores, enfim, todos os condimentos para acção, emoção e coração! Pouco mais de centena e meia de páginas que poderiam ser muitas mais caso não tivesse havido a opção de o compor num tipo de letra pequeno demais, quase a pedir lupa a ceguetas como eu. Um romance que, mais uma vez, marca a qualidade da produção literária desta nova vaga de escritores que faz jus à capacidade de estar culturalmente neste mundo globalizado.
A apresentação foi feita pelo escritor Vamberto Freitas, ele que tem tido sempre uma palavra de estímulo aos novos valores da nossa Literatura e da nossa Arte. E que, por isso mesmo, afirma: Hélder Medeiros pertence a uma nova geração de escritores portugueses espalhados pelo continente, ilhas e até na diáspora que estão a mudar inevitável e irremediavelmente os nossos imaginários do arquipélago. A residir aqui nas ilhas, só para falar dos que mais atenção têm recebido nestes últimos anos, estão João Pedro Porto, Joel Neto e Nuno Costa Santos, que anda sempre entre o Livramento, também aqui ao lado da minha casa, e Lisboa.
Mas não se pense que este A Balada do Ouro Nazi é um simples policial. Não! Estamos perante um livro que revela preocupações sociais profundas. De um porto do Reino Unido parte um carregamento ilegal (ouro) e que vai a caminho dos Estados Unidos da América. Surgem os Açores com a sua importância estratégica para o desvio do cargueiro e entra na teia do romance muito daquilo que hoje nos preocupa: o poder dos gangs, a corrupção instalada, no caso concreto dentro da própria polícia e até no ficcionado Banco de Portugal, a traição e a intriga e os inimigos que interesseiramente vestem a pele de amigos.
Como muito bem escreve Vamberto Freitas, andam todos à procura do dinheiro e do prestígio social dominante, aqui metaforizado numa secreta Ordem do Arcanjo, que vai buscar as suas fantasias ao jesuíta açoriano dos séculos XVI e XVII, Bento de Góis. Intermitentemente, o narrador vai comentando a História, e crê que o ouro nazi nada tem a ver com nacionalidade ou regime de qualquer espécie – tem tudo a ver com o poder universal do metal brilhante, que para nós a Ocidente vem de tempos imemoriais até ao Velho Testamento, a mensagem do castigo dando sempre lugar à fantasia da luxúria.
E, por isto mesmo, considero que Hélder Medeiros consegue concitar opiniões dos mais diversos ângulos de percepção desta profunda questão, sem nunca extremar posições, dando lugar à flutuação do pensamento individual, enriquecido pela força do diálogo e pelo acervo de novas descobertas.
Na leitura do romance surgem-nos momentos de profundo humor, aquele humor que está no ADN de Hélder Medeiros e, paralelamente, fascina-nos a forma original de algumas passagens do livro, como, por exemplo, quando reproduz, graficamente aquilo que seriam os bilhetes anónimos de há uns anos, escritos em máquina de escrever, teclado HCESAR ou AZERT. Era numa máquina destas que o Carniceiro do Bosque das Crianças escrevia os seus recados para o agente Lourenço Gouveia.
Mais uma vez, socorro-me da apresentação de Vamberto Freitas que traduz precisamente aquilo que eu considero que deve ser um pensamento dominante quando se fala da Literatura que aqui se faz, porque, de facto, escritores como Hélder Medeiros vêm dar um novo fôlego à nossa literatura, ou pelo menos a levá-la para todos os lados, a quebrar o pequeno referencial que havia servido de imagens e metáforas a muita escrita nossa do passado. Para ele, como para os seus colegas, o mundo inteiro não passa de uma série de ilhas, às quais eles pertencem e vivem em directo ou à distância, sem ter de anunciar ou falar sequer do “universalismo” que tanto obceca alguns leitores e críticos portugueses, como se não soubéssemos que o coração ou a condição humana difere só no seu grau de bem-estar ou sofrimento, ou que os nossos medos e ansiedades são partilhadas por todos os outros. As ilhas em todos os oceanos têm estado sempre na melhor literatura ocidental, numa continuidade temática e estética que Édouard Glissant chamaria de “poética da relação”. Recebem os mais inesperados visitantes, e absorvem na sua cultura um pouco de todos, o seu olhar para além do horizonte um misto de saber e curiosidade, filhos e filhas saudavelmente híbridas que lhes vem desse pluralismo de relacionamentos.
Por tudo isto, esta Balada do Ouro Nazi é mais um passo para Hélder Medeiros, de quem muito mais ainda se espera, mas é, essencialmente, um momento de ouro (não nazi) para a Literatura Açoriana… que nos orgulha!
Santos Narciso
Nota: Publicado na Coluna Leituras do Atlântico do jornalista Santos Narciso, aqui reproduzida com a autorização expressa do Autor.