Do intelectual público no nosso tempo – I
Um pouco depois de aluno já com licenciatura em Estudos Latino-Americanos na California State University, Fullerton, regressei à minha Ilha Terceira poucos anos depois de ter emigrado para os Estados Unidos aos 13 anos de idade, e deparei-me numa montra de uma livraria em Angra do Heroísmo com um livro cuja capa e o próprio título me perturbavam de modo inusitado: Da Vida Quotidiana Na LUSAlândia, de um autor que me era então totalmente desconhecido, de nome Onésimo Teotónio Almeida. Olheio-o fixamente. Tinha estilizado na capa algo meio ruim, como se fora uma águia norte-americana de cara severamente zangada num fundo de azul e branco, mas era o título que me incomodava, e nunca tinha visto o neologismo “LUSAlândia”. Não perdi de imediato o jogo de palavras: o “L” maiúsculo mas subjugado às iniciais inconfundíveis “USA”, e sabia muito bem o significado de “lusalândia”. Pensei de imediato que isto tudo tinha a ver também comigo, já como ser híbrido ou binacional. Só achei interessante ter a chancela coimbrã Atlântica Editora, e decidi logo que me seria um livro importante. Nessa altura eu não lia o semanário luso-americano Portuguese Times, e portanto não conhecia nada do autor dos ditos textos, pois, como disse, eu vivia na Califórnia, longe e até mesmo inconsciente ou indiferente ao que se passava com a minha gente no outro extremo do continente. Quando cheguei à minha casa algures no sul da Califórnia comecei a ler de imediato a sequência de textos que Onésimo havia coligido e organizado numa espécie de narrativa com princípio, meio e fim. Foi o tal “choque de reconhecimento” melvilleano, o reconhecimento de mim próprio através das palavras de um outro.
A partir desse momento de leitura e meditação nada seria, para mim, nunca mais, o mesmo. Muito do que eu havia pensado, sofrido e desejado estava ali escrito. O desprezo ante a ditadura que então atormentava o meu país natal, a separação da minha própria comunidade imigrante em que eu residia ou vivia ao lado, a afirmação condigna numa terra ainda estranha, mas já mais minha do que eu pensava. Era agora o conforto das palavras de quem tinha as mesmas origens e as conseguia exprimir sem complexos ou medos públicos. Não pensava ainda no conceito de “intelectual público”, mas percebia-o, e percebi ainda mais como era possível reinventar uma voz que chegasse a outros, e desejava mudar não necessariamente o mundo inteiro, mas pelo menos aquele a que pertencíamos por direito próprio e pela imposição da nossa história ou do nosso destino. Da Vida Quotidiana Na LUSAlândia ocupa um dos lugares mais nobres da minha colecção pessoal aqui em casa, numa ilha açoriana, o livro que me permitiu entrar rapidamente nos jornais da minha comunidade e escrever comentários críticos sobre o que dentro dela se passava, ou ainda mais sobre o seu ambivalente relacionamento com o restante país em que estava irremediavelmente integrada. Não é muito? É uma referência, no meu caso, particular, indelével, duradoura. Não regresso a Da Vida Quotidiana Na LUSAlândia com muita frequência, mas nunca o esqueço. Devo adicionar que considero o primeiro grande intelectual público da nossa incipiente modernidade nos EUA o escritor e poeta de nome Garcia Monteiro, faialense nascido em 1853 e falecido em 1913 na cidade de Cambridge, Massachusetts. Escreveria também alguns dos mais críticos e duradouros ensaios sobre a política interna do seu pais de adopção, assim como do seu Portugal natal, abordava tudo que dizia respeito à cultura literária e relações externas dos seus dois países.
Só Onésimo Teotónio Almeida, uma vez mais, faria o mesmo para a nossa geração. Bem sei que até hoje ele continua a publicar a um ritmo pouco comum entre nós, e que outras ideias e posições formam e enformam a sua vasta e diversificada obra. Acaba de sair o seu novo livro de ensaios, A Obsessão da Portugalidade. Queria apenas enfatizar aqui que um dos seus livros foi determinante no que viria depois na minha própria vida pública e publicada, tanto nas comunidades, e mais tarde em Lisboa, no Diário de Notícias, como depois aqui nas ilhas. Nos anos 80 foi ele e outros colegas que iniciariam a discussão sobre a açorianidade, e muito especialmente as suas representações na literatura escrita nas ilhas ou por ilhéus espalhados um pouco toda a parte. Não foram anos nada pacíficos entre nós, pois defender a existência de uma literatura açoriana colocava-nos em posições políticas a que nenhum de nós queria pertencer, e muito menos sofrer certos rótulos, os mais amenos dos quais, porventura, sendo acusados de “regionalistas”, “provincianos”, “separatistas”, e por outros nomes muito piores. Que a renovada defesa dessa escrita ou discursos públicos vinham de uma certa e pouco moderada esquerda residente em Lisboa e arredores, quase todos congregados em volta da revista A Memória da Água-Viva, dirigida pelo falecido J. H. Santos Barros e por Urbano Bettencourt, pouco significava entre os menos atentos, ou nacionalistas de trazer por casa. O certo é que persistimos em adoptar linguagens que, antes de mais nada, significavam quinhentos anos de separação da mãe-pátria por um mar imenso, e que essa história e geografia teriam tido as suas consequências, tanto éticas como estéticas. “A geografia, para nós, vale tanto quanto a história”, como diria, mais ou menos, Vitorino Nemésio. A verdade, hoje tão evidente, é que o próprio Poder ilhéu que nos contestava nessa altura, viria a fazer suas as nossas ideias e narrativas, frequentemente expressas nos seus diálogos e trocas com a República, em tudo que diz respeito directo às nossas reivindicações e deveres. Se há um exemplo de como alguns intelectuais públicos influenciaram o rumo e posturas de toda uma sociedade, o nosso deve permanecer como exemplo e actuação consequentes. Outros livros e autores seriam eventualmente lidos e meditados, mas dava-se nessa época continuidade ao que, pelo menos desde o século XIX, eram certas vontades e retórica açorianas. Resisto aqui falar em nomes que todo o país reclama para o seu cânone literário, mas nunca nenhum deles, os mais citados, se esqueceram alguma vez das suas origens, da sua terra de nascença – Antero de Quental, Vitorino Nemésio e Natália Correia. Estes dois últimos até se bateram em palavras e acções para que os Açores nunca o deixassem de ser, como quisessem e entendessem. Intelectuais públicos como eles foram e serão sempre exemplos de como nunca a ideologia e a sociedade que desejavam calaram ou intimidaram a sua voz pública no continente, e muito menos nas ilhas.
Onésimo Teotónio Almeida, Da Vida Quotidiana Na LUSAlândia, Coimbra, Atlântica Editora, 1975.