Daniel de Sá sobre: Viagem perfeita para o Brasil em 1750 em Crónica do Despovoamento das Ilhas
Daniel de Sá. Nasceu na Maia, S. Miguel, Açores, em 2 de Março de 1944. Foi professor do ensino primário. Estudou Filosofia e Teologia em Valência e Granada (Espanha). Exerceu vários cargos públicos. Escreve em jornais e publicou catorze livros, entre os quais: "Ilha Grande e Fechada, romance, 1992; "Crónicado Despovoamento das Ilhas[e outras cartas de El-Rei], crónicas históricas,1995;"A Terra Permitida",romance, 2003, todos pela editora Salamandra. O seu livro mais recente é "O Pastor das Casas Mortas", novela, 2007, Ver Açor.
Foi agraciado pelo Presidente da República no último 10 de junho,Dia de Portugal, Camões e das Comunidades, com o Grau de Oficial da Ordem Infante D. Henrique pela relevância de sua obra e por sua contribuição na expansão da cultura portuguesa.
(Lélia Nunes sobre Daniel de Sá)Daniel de Sá sobre: Viagem perfeita para o Brasil em 1750
Na escuridão da câmara, todos os medos eram pavores e cada balanço do navio parecia o início de uma viagem até ao fundo do mar. A cada vaga que a galera subia, José Belizário sentia o corpo preso ao chão, esmagado, como pesando dez vezes mais. A vaga levantava a galera pela popa, erguia-a inclinada quase a pique, depois sustinha-a por momentos num repentino pairar sobre o abismo aberto atrás e à frente, para de imediato a deixar cair de popa e escorregar numa vertigem aflitiva, em que o corpo vinha descendo leve, solto, como desfeito e desconjuntado, como se alguém pela garganta o extirpasse de estômago, intestinos, pulmões, que tudo o que lhe havia dentro parecia ficar-lhe atrás na descida, para se recompor no final da queda e logo se esmagar no chão da coberta, quando o navio fendia a cava da vaga mergulhando nela numa semelhança perfeita com o que seria o princípio de um naufrágio. E tudo recomeçava sempre igual, sete, oito vezes por minuto, quatrocentas, quinhentas vezes por hora, intermináveis minutos e infinitas horas, com os mesmos gemidos, os mesmos vómitos, os mesmos corpos a rolarem uns contra os outros, e o corpo a seu lado, do moribundo de S. Jorge, a tocá-lo inerte, como morto, o que só o calor da febre dizia não ser verdade ainda. Neste tormento houve pausa quando o navio entrou no centro da tempestade, para recomeçar a seguir com vento e vagas contrárias que obrigaram o homem do leme a meter de capa, numa luta de fúria e de perícia para evitar as vagas de través, com a ajuda do capitão e da mezena pequena, que para isso fora envergada durante e trégua da passagem pelo olho do ciclone.
Os fedores acumulavam-se na câmara, e não entrava nela nem saía um átomo de ar sequer. Eram os vómitos dos enjoados, que o iam todos, eram as fezes das diarreias, que as tinham muitos, era o cheiro de dois meses de suor e sujidade, das cabeças cheias de piolhos.
Pelo tempo que parecia demorar a tempestade, José Belizário julgava ser dia já, o que não podia saber ao certo porque a luz não entrava na câmara, mas a noite nem ia em meio ainda quando sentiu o chão molhado pela água do mar que saltava ao convés e pela chuva que caía nele, entrando por onde o ar não passava. Tentou levantar-se, mas não lhe subiu o corpo mais do que até apoiar-se nos cotovelos. José Belizário resignou-se novamente à frieza húmida do chão, e deixou de estar à espera de que a tempestade passasse, não pensando no tempo decorrido nem imaginando o que faltaria decorrer ainda. Teve de desviar o corpo do moribundo, que escorregara a ocupar-lhe o lugar, mas continuou a sentir o peso dele a encostar-se ao seu, agora de cada vez que o navio iniciava a subida até à crista da vaga. Depois, esse corpo foi perdendo o calor da febre, ficou frio, gelou, e José Belizário compreendeu então que estava morto.
Três dias e três noites, pelo menos, esteve o cadáver a seu lado, e já apodrecia quando a tempestade amainou e se abriram as portas da câmara. O Sol surgia no horizonte apaziguado, e muito lhe custou a compreender que aquela era a primeira vez, afinal, que ele nascia depois de, na véspera, ter deixado as trevas cobrirem o "Senhora da Esperança e Vera Cruz". Como por milagre, não se rompera a mezena pequena, nem uma cavilha cedera e nem uma fenda se abrira no costado do navio.
Ali não importava perguntar por alguém se estava bom, mas somente saber se estava vivo. Os seus estavam, e assim chegaram à ilha de Santa Catarina, onde morreu um dos enfermos que havia a bordo, no momento de largar ferro, o décimo da lista de defuntos, que até foi curta nessa viagem, pois muitas outras houve piores, tendo-se notícia de numa delas escapar um somente dos quinze casais transportados.
Por ter sobrevivido mais a mulher e o filho, ainda o chão da nova terra, pelo hábito dos sentidos a três meses de balanços no navio, parecia andar-lhe à volta em ondulações de bebedeira, e já todos os tormentos esquecera José Belizário, não apenas os próprios de estar a bordo mas também a carne e o toucinho rançosos, o biscoito que, de tão duro por ser massa duas vezes cozida, se transformara nas esfareladas sobras da fome dos ratos que escapavam à perseguição dos gatos e das doninhas levados a bordo para o serviço de os matar, como se não bastasse a devastação que no dito biscoito causavam os vermes e a humidade, os doentes que o cirurgião se recusara a sangrar por medo do contágio, os moribundos que o capelão não ungira com os óleos santos pelo temor de se lhes ir juntar mais cedo do que desejava, a maneira como o capitão lamentava um animal dos que lhe davam carne, leite ou ovos frescos, lançado morto ao mar, não dando mostras de desgosto parecido quando sorte igual tinha um passageiro, e tudo o mais que, embora não sabendo se era costume ser assim, lhe pareceu mal feito. Por isso, tendo sido um dos seis homens escolhidos em segredo para, em segredo também, revelarem queixas que fossem do seu entendimento fazer contra o capitão, José Belizário disse que tudo fora perfeito.
Daniel de Sá