Nas décadas de 50 e 60 eu costumava, até porque não havia outro remédio, acompanhar meus pais à casa da praia, a 100 km de Porto Alegre. Eram longos verões, que qualquer um diria perdidos, mas que me foram muito úteis. Em primeiro lugar porque pegava na biblioteca do Colégio dos Jesuítas, onde estudava, uma data de livros, levava-os à praia e os devorava nos longos serões sem luz elétrica (era lampião ou vela, e mas ninguém se queixava), enquanto outros da minha idade aproveitavam para jogar bola, namorar, etc. Foi assim que li, pela primeira vez e encantado, o Eça (os bons padres eram tolerantes…). Em segundo lugar, porque conheci alguém inesquecível. Tínhamos um vizinho que, nas generalizações domésticas nem sempre verdadeiras, era chamado simplesmente de "o português". Óculos de fundo de garrafa, alto, jeito manso e acolhedor. Pouco a pouco, contou-me algo a seu respeito. Era, sim, português, mas melhor do que isso, era açoriano – e aqui no Rio Grande do Sul, como se sabe, os Açores são um mito. Fiquei, em relação àquele que se chamava Eduardo Vasconcelos Moniz, com um interesse, digamos, turístico e histórico. Não havia, na altura, nenhum açoriano no Estado, e para mim essa raridade foi instigadora. Acerquei-me dele e da esposa, Dorothy. Ele, um dia, sabendo que eu era um moço "ledor", emprestou-me o "Mau Tempo no Canal", cuja linguagem me atrapalhou bastante, mas na mesma medida me fascinou. O Eduardo fez-me um "dicionário" faialense-picaroto (uma dedicação de missionário!), e me explicava as partes mais crípticas.
De volta a Porto Alegre, findo o verão, seguimos na amizade, e ele me foi dando mais livros do Nemésio e de outros autores. Havia um nome que ele pronunciava com um respeito de idólatra. Era de Pedro da Silveira, do qual me emprestou o "A Ilha e o Mundo". Mas tarde, ele me mostrou alguns contos que ele próprio escrevera ainda em São Miguel, dois ou três publicados numa revista literária. Enfim, eu juntando as peças, identifiquei meu vizinho estival como alguém outrora muito ligado à prática das letras, e pertencente a uma geração importante Era isso o máximo a que eu chegava – mas enfim, era bem jovem: tudo isso aconteceu-me entre meus 15 e 20 anos.
Essa convivência terminou de forma trágica. O Eduardo dedicava-se a representações de indústrias, e possuía escritório numa das ruas mais mal-afamadas de Porto Alegre, a Voluntários da Pátria, cujo nome homenageava os soldados que lutaram na Guerra do Paraguai ƒ{ muitas vezes conduzidos, sabe-se, ex manu militari. De dia, a popular "voluntas" tinha lá sua respeitabilidade comercial, mas a partir da noitinha transformava-se num reduto de malfeitores e prostitutas. Certa vez o Eduardo saiu mais tarde de seu escritório e um rapaz deu-lhe um encontrão, uma batida no peito, e assaltou-o, roubando-lhe a carteira. Afora o susto, era uma cena de lamentável recorrência, mesmo naqueles dias de precoce criminalidade urbana. Pois o Eduardo encaminhou-se normalmente para casa e estava contando aos familiares o sucedido quando a dor no peito tornou-se insuportável. A batida, aparentemente inofensiva, havia-lhe rompido a aorta de cima a baixo, e não adiantou levá-lo às pressas para o hospital. Morreu miseravelmente, com uma incontrolável hemorragia interna.
Passei muito tempo tentando recuperar-me do horror, e a melhor forma de homenagear o amigo foi dar vida a seu trabalho. A partir de então senti que minha vida intelectual ƒ{ e afetiva ƒ{ estaria para sempre ligada à Literatura dos Açores.
Conheci pessoalmente o Pedro da Silveira, num desses concílios literários pelo mundo. Correspondia em tudo à imagem que dele me fizera o Eduardo Vasconcelos Moniz, a que acrescentei uma: a excepcional memória. Quando soube que eu era do Rio Grande do Sul, desfilou-me nomes de escritores e intelectuais, em especial Guilhermino César. Sabia pormenores da vida e obra de cada um.
O Eduardo foi-se, mas creio até que merecia essa referência íntima, pois revelou-se um divulgador além-mar da Literatura Açoriana e, por via de conseqüência indireta e inimaginável, o gerador de todo um grupo de acadêmicos dedicados ao tema, e que se congregam na Universidade em que tenho a honra de trabalhar.
nota:Imagem do Monumento aos Açorianos,Porto Alegre (RS)