Na passarela mágica e de imensa beleza paradisíaca do Vale das Furnas durante o encerramento do II Congresso Internacional da Imprensa Não Diária os participantes foram agradavelmente surpreendidos com a oferta de um livro. Tratava-se da mais recente obra da escritora açoriana Adelaide Freitas: "Nas Duas Margens:da Literatura Norte-americana e Açoriana",minutos antes apresentada. Sobre a trajetória de vida e a obra literária da autora discorreu com grande propriedade e conhecimento a Dra.Tereza Martins Marques. A obra, uma compilação de textos e outros escritos sobre a literatura das duas margens atlânticas foi apresentada numa fala simples carregada de emoção, por seu companheiro de vivências absolutas da lágrima ao sorriso, Vamberto Freitas. Uma obra que tem muito de si na sua cuidadosa concepção.
Trata-se, sobretudo, de um livro de excelência gráfica e diagramação impecável editado pela empresa Linhas e Círculos – Unipessoal Ltda. com o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e produzido pela Nova Gráfica Ltda. num trabalho de ótima qualidade. A expressiva capa traz a assinatura de Álamo Oliveira que tangido pela sensibilidade, numa arte de pura criação poética, revela o quanto de cumplicidade existe entre o conceito gráfico da capa e o conteúdo do livro: textos, traços, caracteres, vozes e olhares. Talvez, o mais indicado é dizer da intimidade que se percebe entre as imagens sobrepostas e as letras, palavras, escritas que falam do ser humano, da vida, da paixão, do sofrer, do chorar, do sorrir, de encontros, de partidas, do mar e de cenários telúricos em textos de literaturas: açoriana e norte-americana.
Que bela forma de se conhecer ou entrar no livro e com gosto navegar por suas páginas como embarcadiço de uma baleeira da imaginação.
"Nas Duas Margens: da Literatura Norte-americana e Açoriana", um livro que acabou de sair e que justifica mais que um simples registro, merece que se fale de seu valor literário e de sua valiosa autora, sua habilidade, talento, generosidade intelectual, e contribuição inconteste à literatura portuguesa e da diáspora.
Adelaide Freitas, uma escritora de maturidade reverenciada, espírito aberto, coerente com seus princípios, verticalidade no pensar e no agir, deu-nos muito da sua pena vibrante e vigorosa: poesia, prosa poética, contos, narrativas ficcionais, ensaios, um importante estudo sobre a obra de Hermann Melville,"Moby Dick A Ilha e o Mar – Metáforas do Carácter do Povo Americano" (Doutoramento,1987) e um romance "Sorriso Por dentro da Noite" que fala da emigração, do olhar de quem ficou para trás, a esperança do amanhã, a saudade infinita,o vazio da partida e dos sonhos…"olha lá para o mar,põe os teus olhos a boiar e deixa-os navegar."
"Nas Duas Margens: da Literatura Norte-americana e Açoriana", um conjunto de dezoito textos numa temática onde se percebe a sua força na defesa de uma literatura açoriana e de uma literatura produzida na outra margem, na América do Norte. Mais uma referência inescapável de sua expressiva obra. Ensaios e outros escritos que contextualizam e teorizam a cultura e a literatura nas duas margens desse imenso "rio Atlântico", abrangendo o período de 1989 – 2003, com total domínio do conhecimento do que discute e defende, numa narrativa viva, intensa, cheia de significados e, sobretudo, fortemente testemunhal. Um estilo que cativa o leitor, comove, convence, transborda no afeto, na gentileza de sua voz, na capacidade de olhar o ser humano por dentro, na alma – o melhor de si.
Adelaide poeta está presente mesmo nos textos acadêmicos onde deixa fluir a sua sensibilidade na análise acurada da ensaísta e crítica, às vezes até a exaustão, onde o apuro literário, o frescor, o ritmo e a linguagem escorreita, apaixonada se revelam em plenitude. Um curioso percurso com olhares, imagens ora fortes, contestatórias, ora ternas, carregadas de metáforas que intrigam, provocam. Admirável resultado!
Desde o texto inaugural "Moby Dick e a Recuperação da Memória:Portugal na sua Atlanticidade"(p.15-30) até a última escrita,um texto de corajoso alerta, em "Uma baleia vê os homens:O reacordar da humanidade" (p.245-263) embrenha-se em trilhas d`alma, numa imersão visceral no microcosmo ilhéu na força que vem da terra, do mar, do grande cetáceo, na saga dos que partiram, em rotas de afeto, por caminhos da memória numa constante vigília esgueirando o olhar nas duas margens: uma à espera, o sonho concretizável para além do mar, o fascínio, a promessa; a outra a realização do "Sonho Americano". Eis a imagística açoriana. Aí está o desenho, o bordado do relacionamento entre as duas margens, os dois universos tão distantes, tão distintos: o Novo Mundo , "Califórnias perdidas de abundância" e a sociedade fechada das ilhas.
A reflexão e o discurso coerente abraçam os dois mundos distantes na geografia espacial e aproximados pela grande corrente humana da emigração tecida com fios da esperança e fortalecida por relações histórico-culturais entre Açores e América.
No que tange à literatura açoriana, a autora oferece "A Historiografia na Literatura Açoriana", mostrando o processo dinâmico da mudança histórica e cultural, os questionamentos, o novo repensar, a construção de uma nova cartografia no âmbito da literatura a partir de uma visão gerada do espaço insular para o espaço continental numa inversão do olhar institucional até então vigente e subsistente, contribuindo para esta nova arquitetura da escrita açoriana nos seus múltiplos registros discursivos. Escolhe para objeto de sua análise as obras dos açorianos Martins Garcia, de João de Melo, de Álamo Oliveira, de Daniel de Sá e da americana de ascendência luso-açoriana Katherine Vaz. Ao justificar a sua escolha afirma que são obras assentadas "numa poética de ruptura e convergência, de recuperação da memória, numa mútua relação de diálogo com o passado e o presente, em cujo metaponto se encontra e se reafirma a identidade individual e colectiva das gentes açoriana."(p.50). Uma escrita cidadã a potencializar lições e socializar conhecimentos.
Finalmente, quero destacar o texto "Para uma sensibilização ao universo feminino" em que a autora narra a história da emergência e do florescimento de um discurso e ficção feminino, traçando a dialética da luta da mulher por seu direito de independência, de voz , de liberdade, de afirmação no mundo português ( a ousadia das Novas Cartas Portuguesas,1972) e a condição da mulher açoriana e suas conquistas no tempo e no espaço, o romper amarras e assumir desafios. Aqui colocados com discernimento, lucidez e sabedoria.
Ao estabelecer "uma poética de leitura num contexto internacional sujeito a várias interpretações polissêmicas e, portanto, questionáveis(…)",dentro do espaço temporal considerado, a autora atingiu plenamente seu propósito – "um espaço aberto que,bem ou mal,espera e reclama o diálogo,rasgando caminhos e libertando–os do escuro para o salto da luz,para o azul do espanto.(p.11)
Nas Duas Margens: da Literatura Norte-americana e Açoriana – um livro singular que cruzou os dois sentidos do Atlântico, traçando pontes de afetos, falando com respeito de sua gente açoriana em constante mobilidade, embarcados ou passageiros da mesma baleeira da imaginação.
Adelaide Freitas atravessa o seu tempo em ritmo próprio. Segue seu caminho, refaz seus passos conforme as exigências de sua vida, de antes e de agora, no tecer suave de seu universo.
Lélia Pereira da Silva Nunes
Florianópolis,Ilha de Santa Catarina