Leva o cigarro à boca, inspira o fumo. Retém-no um segundo. Inclina depois a cabeça um pouco para a frente enquanto o cliente, um homem de óculos e camisa branca às listas espera, a perna esquerda estendida e apoiada na caixa.
Procuro, do outro lado do passeio, um ângulo inusitado da igreja, aquilo a que os profissionais da fotografia chamam «olho de fotógrafo». Sou apenas um aprendiz. A máquina, que se me escapou das mãos e caiu nas pedras das caldeiras das Furnas no dia anterior, cumpre, sem lamentos, a sua obrigação.
Está uma manhã admirável. A luz reverbera como um cristal e deixa no ar um rasto de flores. O mar, tranquilo. Nuvens muito brancas vagueiam na paisagem.
– Eh senhô!
O engraxador faz um gesto com a mão livre: quer ser fotografado. Espero que leve o cigarro à boca para registar o momento em que expele o fumo. A máquina, porém, não é suficientemente rápida. Gravo apenas a mão aberta, o cigarro, ponto branco entre os dedos, o relógio e a manga da camisola arregaçada. Ao fundo, entre as arcadas, fica a silhueta de um taxista em busca de algo no porta-bagagem.
Continuo. Dois homens, no passeio contíguo à Câmara Municipal, vendem flores. Tiro duas fotografias e prossigo.
Quando venho a Ponta Delgada, o largo da Matriz é uma paragem obrigatória. Enquanto me engraxam os sapatos, sentado na cadeira de plástico do engraxador, observo o que me cerca. Sobretudo as pessoas. A última vez que estive aqui o engraxador era outro, um homem forte, avermelhado, que produzia, com um pano cantante, um estupendo brilho nos sapatos.
Estive aqui ontem. Estranhei a sua ausência e perguntei por ele. Este é sombrio e de uma solicitude calada. Quando fala, expressa-se de um modo labiríntico, em monossílabos sussurrados que desfralda como nuvens esquivas. «Está aí pra cima» disse, sacudindo os ombros.
Respeitei o seu feitio reservado e deixei-o trabalhar sem interpelá-lo. Senti pena, contudo. Aprecio muito as divagações e os pontos de vista do povo, as suas histórias, a efervescência da sua imaginação. Os códigos das hierarquias cansam-me com os seus langores sociais, os seus canais de diálogo que se prestam a exibições de estatuto social, vazios, olvidáveis.
Esquálido, os seus olhos eram como pedras molhadas que abrigavam a inalterável chuva do Tempo. Aplicou pomada como um autómato, escovou, olhando para os lados. O corpo estava ali: a magreza dos braços cobrindo, com lustre castanho, o pó dos meus sapatos e dos meus caminhos, o crepúsculo e o Inverno de outros lugares. O espírito, quem sabe, revolvendo a terra do imponderável, sonhando outra vida, outros espaços. Dou comigo a pensar: o ser humano só é de um lugar quando morre, quando o corpo se junta às raízes de uma terra para sempre. Enquanto vivo, pertence a todo um imaginário geográfico cujas fronteiras, num profundo emaranhado de empatias, se confundem dentro de si.
De repente parou, batendo com a escova no chão. Mudei o pé. Um bando de pombas levantou voo do chão, junto à Igreja da Matriz. Nos meus pés o rumor da escova parecia ter asas. Foi um voo rápido pois não tardei a levantar-me.
– Disseram-me que aqui perto se renova o bilhete de identidade. Sabe onde é?
O engraxador, voltando a cabeça para o lado direito, apontou para trás. Lembrei-me então que necessitava de tirar fotografias.
– Já vou ensinar ao senhor – disse, encostando a caixa à parede. Fez depois um gesto para que o seguisse.
Atravessámos o largo. Acompanhei o seu passo enérgico. Tinha deixado tudo para me ajudar. Há poucos lugares no Mundo onde isto acontece.
– O bilhete de identidade é lá em cima – disse indicando-me uma porta. – As fotografias são ao pé da igreja. Venha, senhor.
Em todos os lugares há seres humanos que são como estrelas. Basta abrir os olhos na imensa noite. Naquela que nos devora os sentidos, que esmaga a fé em tudo isto no momento em que se abre um jornal, se vê televisão. Então alguém se levanta das cinzas e nos indica o nascer do sol no chão que pisamos.
Como o engraxador da Matriz.