A História dos Açores tem sido tomada de assalto. E a História não é como gostaríamos que tivesse sido, por isso não se pode escrevê-la de novo. Se há factos que sempre foram mal interpretados ou mal conhecidos, isso não implica que a maior parte do nosso conhecimento do passado não esteja conforme a verdade.
Num tempo em que muitos procuram a todo o custo inventar indícios para "naturalizar" Cristóvão Colombo como português, outros vasculham em lendas e mitos uma autoria estrangeira, e muito mais recuada no tempo, para a descoberta dos Açores. Porque o que importa é apresentar créditos de novidade, ainda que à custa do real.
Claro que estamos sujeitos a errar quando repetimos opiniões alheias ou quando investigamos mal. E nisto contra mim mesmo falo, pois não poucas vezes tenho errado, quer por confiar no que disseram outros, quer porque não me tenha dado à paciência de fazer o meu próprio trabalho.
Um dos casos em que isso já me aconteceu foi a respeito da data da primeira procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Para muita gente têm persistido as dúvidas acerca do ano em que ela teria acontecido. Embora a intenção fosse apenas a visita da imagem aos outros conventos de clausura de Ponta Delgada, cujas freiras mostravam grande interesse em conhecer o Senhor representado naquele passo da Paixão, as ruas foram atapetadas com flores e as varandas engalanadas de um modo algo espontâneo, tendo o cortejo contado com larga presença de clero e outras pessoas ilustres. Muitos apontam o ano de 1700 como aquele em que esta manifestação de fé teria ocorrido, sendo menos os que afirmam ter isso sucedido em 1698. Não tendo nós informação explícita sobre o dia da semana, sabemos no entanto a sua data: onze de Abril. Os defensores da tese de 1700 partem do princípio simples de que essa procissão teria sido num Domingo, tal como acontece há séculos. Se assim tivesse sido, a data estaria correcta. Mas eis o que a certa altura diz o biógrafo de Madre Teresa: "Em último lugar ia o pálio com o Santo Lenho, a que acompanhava uma tão numerosa multidão de povo, que os oficiais deixaram o trabalho, os mercadores as lojas e os forasteiros as vilas e lugares circunvizinhos."
Por aqui se vê claramente que essa procissão não pode ter-se realizado num Domingo. Era impensável em 1700 que os "oficiais" estivessem no seu trabalho ou os mercadores com as lojas abertas.
Sabe-se, no entanto, que a procissão foi num ano próximo de 1700, mas antes de 1704. Madre Teresa por norma honrava a sexta-feira, o dia da Paixão do Senhor, de um modo muito especial, inclusivamente quando começava alguma obra para o Senhor Santo Cristo. Eis o que diz Frei José Clemente, a propósito da morte de Madre Teresa: "Era o dia de sexta-feira, dia dedicado ao Senhor e de tanta devoção para a venerável Madre, que sempre nele recebia de Deus algum favor especial, e justo era que nele alcançasse o último como coroa dos seus merecimentos." O mais natural, portanto, é que tivesse escolhido esse dia da semana para a primeira visita aos outros conventos.
Assim, ter-se-á de procurar a sexta-feira mais próxima de 1700 como o dia em que, sem qualquer dúvida, terá ocorrido a primeira procissão do Senhor Santo Cristo. E este dia é o de onze de Abril de 1698. (Note-se que 1700 não foi ano bissexto, pelo que onze de Abril foi numa sexta-feira dois anos antes.) E, para que não restem dúvidas, repare-se que aquele onze de Abril de 1700 não foi um Domingo vulgar, mas o dia de Páscoa. Quanto ao onze de Abril de 1698 foi a sexta-feira que se seguiu ao Domingo de Pascoela. Um dia que facilmente Madre Teresa julgaria apropriado para o passeio do Senhor, pois que ela sempre associou a Paixão de Cristo à Ressurreição.
Daniel de Sá
*Foto do Senhor Santo Cristo dos Milagres de Fernando Resendes – Ver Açor.