Poderia começar fazendo um registro de sua biografia, citando a formação acadêmica: o curso de Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (1958-1963),a passagem pela Fundação Calouste Gulbenkian,em Portugal(1962),a Academia de Belas Artes de Florença (1966), o curso de Mestrado em Educação Artística, na Universidade de Boston (1983-1985) ou o valioso percurso artístico referenciado em quase uma centena de obras, ensaios, artigos assinados pelos mais renomados escritores e críticos de arte. Ou, ainda, citar as dezenas de artigos e textos para catálogos de exposições saídas de sua competente e expressiva lavra. Este é o Tomaz Vieira – o artista que com o pincel traça narrativas cromáticas sobre a vida, cultura, coisas & gentes que estão no Meio Atlântico – os Açores.
Mas, qual nada! Entrei por outro caminho – a Canada do Castelo – e fui atrás do homem- escritor que traz a alma no olhar e me enterneceu com sua escrita suave como na novela “Herdar Estrelas”(2000), nos belos contos de”Degrau de Pedra“(2002). Se “a escrita é como o nosso corpo – para onde vamos com este levamos-lhe colado o espírito”, nas palavras sábias do amigo e escritor Daniel de Sá, e fui ao seu encontro nas páginas de “O Carcereiro da Vila – e outras histórias”. Encontrei um ilhéu atento ao seu universo e ao mundo circundante, um observador reflexivo do tecido social, em constante diálogo com memórias suas e de sua gente.
Tomaz Borba Vieira é açoriano, nascido na Ilha de São Miguel, na cidade de Ponta Delgada. Na escola primária aprendi que “Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados.” Apenas a definição, nua e crua – “um espaço geográfico circundado de água.” Nem uma referência ao infinito que se descortina de suas janelas abertas para o mundo, ou de sua gente que carrega a Ilha dentro de si, nas suas entranhas, que deixa transparecer no olhar a comunhão telúrica com o mar e traz na pele o sabor do sal. “Porque se nasce numa ilha o mundo é todo ilhas” escreveu José Martins Garcia in: Signo Atlântico, (1984).
Nestes vinte e um anos, de muito ir e vir aos Açores, conheci outras definições, conceitos, ideias sobre o que é uma Ilha, o sentir e ser ilhéu e o viver numa delas. A minha “Ilha”, a de Santa Catarina, foi povoada por milhares de ilhéus – “os vossos” e que hoje são ” os nossos,” frutos de uma errância histórica. Nossos nomes de família se assemelham e se identificam. Na margem de cá, muitos acreditam que têm “um pezinho” nas ilhas açorianas. Como os “Borbas“, baleeiros, devotos do Divino, de Barra Velha e de Penha, no norte catarinense e os “Vieiras,” oleiros de São José da Terra Firme ou os nobres herdeiros de sesmarias no planalto catarinense e no Rio Grande do Sul. No meio desta irmandade Atlântica está Tomaz Borba Vieira, quem sabe não terá ele,também, “um pezinho” posto cá, na “terra dos esquecidos” ? Vai saber, há de ter… Quem duvida?
A Ilha de São Miguel, onde nasceu Tomaz Vieira, é uma Ilha grande, maior que a de Santa Catarina. Ambas, por sua beleza, cantadas em prosa e verso. A de Santa Catarina é a Ilha da Magia ou a Ilha das Bruxas.Título plenamente justificado. A de São Miguel é chamada de Ilha Verde e também esconde seus mistérios anímicos. O que é incontestável. Sim, a Ilha da São Miguel onde nasceu Tomaz Vieira é mesmo maravilhosa! Ilha de afetos fecundos. Provocante, faz brotar sentimento de embriaguez por sua luxuriante paisagem, uma profusão de tons de verde das criptomérias, do verde-forte do incenso, da suavidade das acácias, do perfume doce das conteiras debruçadas nas ribeiras. Há muito caí de amores por esta sinfonia de cores, de sons, de cheiros e dela fiquei enredada para sempre, apaixonada, amante. “Ilha das minhas paixões-vivas cercadas pelo oceano” entrega, afinal, o verso, tomado emprestado do poeta ilhéu Semy Braga. Quando aí estou me perco contemplando o mar azul profundo em contraste com a negra areia e a rocha vulcânica tal qual uma esfinge com rosto de cão, o verde-garrafa dos campos lavrados entrecortadas por muros de pedras serpenteados por um colar de hortênsias iluminadas pelo sol, em tarde de abril-primavera, a estação da vida,do desabrochar “(…) gerando lilases em terra morta, misturando memória e desejos, caldeando raízes adormecidas com chuvas primaveris (…)“ensina o poema The Waste Land, de T.S.Eliot.
É no cenário fascinante da Caloura, Junta de freguesia de Água de Pau, no Concelho da Lagoa, rodeado por jardins imensos, que vive Tomaz Vieira e sua Conceição. Lá está o seu atelier e o Centro Cultural da Caloura, um paraíso encravado em outro, onde expõe sua arte e arte de tantos quant os foram acolhidos naquele colendo espaço dedicado à cultura e às artes.
Ilha Grande e Aberta! Exclamo com a petulância de quem olha à distância ou à margem. No entanto, sabe reconhecer a arte liberta,cheia de luz que atravessa a obra, que transborda no mundo lírico e onírico de Tomaz Vieira, onde o pincel escreve ou faz vibrar sons,sinfonias solfejadas em clave de Sol, desvirginando a alva tela sobre um cavalete aberto para o universo do homem.
Em cada quadro sua arte pictórica expressa a narrativa visual, o patrimônio espiritual açoriano. A sua escrita,pinceladas de letras e palavras, que em todas as nuances do arco-íris contam histórias e estórias de sua gente. Vai além, oferece uma gama de informações em sua narrativa com o intuito de desnudar personagens e perfis. Sobrepõem-se o pintor e o escritor que, sem aumentar um ponto, vai desenrolando seus contos com arte e alma e deixa a gente se embrenhar por freguesias e vilas, sonhos e desejos. Riquezas de um cotidiano insular captadas com acuidade do olhar, do pintor e a alma do homem escritor. Imagens espelhadas nas telas e nas páginas do livro. Um encontro de inegável beleza.
Histórias que não cansava de ouvir, ouvir e ouvir contar e que ficaram tatuadas na memória ou no coração. Agora, com a elegância da pena volta a contar e (re)contar e contar, transmitindo-as na palavra escrita e no traçado suave do desenho, em ilustrações que emolduram com graça singular cada narrativa, seja real, ou fruto da imaginação.
Em recente e-mail, escreveu Onésimo T.Almeida uma afirmação, que reproduzo, embora o contexto fosse outro ela vem bem a calhar: “A história é feita de estórias e as estórias baseiam-se muitas vezes em mitos. Os seres humanos parece que precisam deles para viver”
Por Santa Bárbara,Yansã!
O que seria de nós sem as fantasias que povoam o nosso imaginário? Imaginar que se está nas asas do vento,na nuvem passageira, na constelação de estrelas ou no rastro prateado da Lua Cheia que ilumina as noites de verão…É tudo de bom!
É de casos e ocasos que, enriquecidos pelo imaginário,pela estética da narrativa e a arte de Tomaz Vieira, fala “O Carcereiro da Vila e outras estórias“, onde a ficção e a realidade se encontram revelando no traçado do desenho e na escrita criativa aquele “quê” de místico ou de salvaguardado de uma memória que transborda do passado em águas do presente a deslizarem intensamente em direção ao mar.
Praia do Arroio Corrente,27/2/2008
Jaguaruna – Santa Catarina
Fonte: “O Carcereiro da Vila e outras estórias” Ponta Delgada, Ed.
Artes e Letras,2009.
Legendas: 1.Tomaz Vieira na Livraria Solmar, acervo blogue
2. “Ilha Grande Fechada”,1978,acrílico s/tela obra de autoria do pintor Tomaz Vieira.