O projecto brasileiro a que se lançara seria então imensamente mais vasto, mas com toda a certeza mais compensador a todos os níveis, era como que a sua síntese intelectual e, uma vez mais, emotiva perante o seu Brasil. No caso dos luso-americanos, Baden disse o que tinha a dizer, e depois retirou-se, não querendo usufruir da participação em congressos que continuavam nos Estados Unidos, Canadá e Portugal, e para os quais ela teria sido sempre convidada. Contida nas emoções, era do mesmo modo reservada e meticulosa nos seus trabalhos científicos e ensaísticos. The Muffled Cries é uma síntese completa de nomes, situações, publicações, leis restritivas, perseguições e, por fim, a libertação da criatividade no seu país de “adopção”. The Muffled Cries ultrapassa o caso especificamente brasileiro, tornando-se num estudo de referência para o mundo de língua portuguesa, pois nenhum daqueles países e territórios estavam livre de repressões aí descritas e documentadas.
Aliás, Baden começa logo por traçar a história da censura em Portugal desde os séculos da Inquisição, a “herança” lusa no Brasil vista como a génese da situação particular brasileira. “We Were Born Censored: The Dubious Legacy” é o título do primeiro capítulo, no qual Baden entrevista e dá a palavra às mais variadas figuras envolvidas directamente na vida artística e intelectual do Brasil naquela época. Baden prossegue com entradas profundas no que ela chama aqui a “teia” autoritária e os que nela foram apanhados, terminando com um capítulo intitulado “Abertura and Beyond: Writing to Remember and to Forget, 1979-1985”. Durante todo este percurso, Baden entrevista um grande número de escritores, vê e revê as suas obras, contextualiza tudo na realidade latino-americana mais vasta, documenta-se numa bibliografia extensa que inclui livros, periódicos de várias línguas e países (nem os artigos do JL, posteriores à situação, de Lisboa, lhe escapavam), filmes e música. Trata-se de um tour de force sobre a língua portuguesa aprisionada, uma vez mais, na sua história já muito antiga, mas fornecendo sempre o principal sentido de comunidade entre todos os que não se reconheciam sob a tutela de governantes ditatoriais tão enraizados no mundo lusíada até há bem poucos anos.
Much of the literature produced by the regime’s opponents conveyed a strong tonality that is combative. One has to search long and hard in literature to find the vision of an exotic Brazil as promoted the official Brazilian tourism. The underside that is revealed in this literature is that of a people being destroyed or rendered helpless by the forces of an unyielding socio-political situation. Illustrations and analyses of Brazil’s multiple problems are readily found; proposed solutions are not. Writing in 1979, critic Davi Arrigucci considered the recent novel inferior in quality to those produced by Brazilian writers in the thirties and forties. For Flora Sussekind, the realism of the seventies was so intense and the presentation so matter-of-fact that the literature sometimes tipped the balance required in the age-old axiom to teach and to delight.
The Muffled Cries permanece como uma obra referencial pela sua prosa discreta, pela sua dialéctica crítica e a de outras vozes criativas, em diálogo ou confronto, pela seu vasto e ecléctico acervo bibliográfico.
Baden nasceu em Los Angeles, e faleceu, a pouca distância, em Fullerton, uma cidade universitária de Orange County, onde ela residiu durante muitos anos. Ninguém associaria de imediato estas geografias do Pacífico ao mundo de língua portuguesa, apesar de próximo delas existirem comunidades imigrantes portugueses, maioritariamente oriundos dos Açores. Mas são os indivíduos que carregam dentro de si os mais longínquos e dispersos universos históricos, culturais e espirituais. Foi nesse “anonimato” entre milhões de outros seres humanos e complexo mosaico étnico em que Nancy T. Baden viveu, ensinou e escreveu durante a maior parte da sua vida. Que os nossos mundos, na sua pequenez de “guetos” comunitários ou na sua vastidão transcontinental e arquipelágica contam com estudiosos e intervenientes tão capazes, serenos e empenhados durante uma vida inteira, partilhando connosco todo o seu saber e sensibilidade transcultural e transnacional, quererá também dizer que, afinal, a globalização em curso tem de enfrentar todos aqueles cujas lealdades múltiplas e afinidades sem fronteiras nunca deixarão perecer a riqueza de cada povo, nunca deixarão de amar as suas particulares geografias sentimentais.
De uma pequena literatura, como a luso-americana, à vastidão criativa do Brasil, Nancy T. Baden deu muito – e deu o seu melhor.
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Notas do Autor : 1. Nancy T. Baden, The Muffled Cries: The Writer and Literature in Authoritarian Brazil, 1964-1985, Lanham, Maryland, University Press of America, 1999, p. ix.
2. Faceta da obra de Nancy T. Baden que abordei pormenorizadamente num ensaio ainda inédito.
3. Edmund Wilson, To the Finland Station: A Study in the Writing and Acting of History, New York, Anchor Books edition, 1953. (Esta obra de Wilson tinha sido originalmente publicado em 1940 pela Doubleday & Company, Inc.). Baden ofereceu-me essa sua edição do livro há muitos anos porque sabia que eu desde muito cedo lia e estudava toda a obra de Edmund Wilson. Curiosamente, nos passos aqui transcritos, vejo preocupações wilsonianas muito nítidas, particularmente a interligação constante de literatura e sociedade. É claro que Baden poderia nunca mais ter lido Wilson, mas disse-me que To The Finland Station lhe foi muito esclarecedor na altura, no que tocava à interacção entre ideias políticas, ideologia e literatura. 4.Entre muitos outros, James Amado, Jorge Amado, Carlos Heitor Coney, Edilberto Coutinho, Rubem Fonseca, Heloísa Buarque de Hollanda e Lygia Fagundes Telles
Observação:Ao publicar o presente artigo sobre a obra da escritora e professora Nancy Baden referente ao período da Ditadura Militar do Brasil (1964-1985) partilhamos o olhar de uma Mulher que captou com grande propriedade e sensibilidade a teia do autoritarismo que prendeu a liberdade de expressão em malhas dos “Atos institucionais” e na tortura física e mental ,mas a repressão e a censura não conseguiram calar a alma de uma nação. O brado forte, a voz de uma geração sedenta de mudança e liberdade se fez ouvir, como nunca, na literatura,na música,na arte,no teatro, com força, coragem, destemor e com grande criatividade.
Afinal, “é proibido proibir”, diz a canção que embalou uma geração…na voz do baiano Caetano Veloso.
Passaram 45 anos,não podemos esquecer!
Florianópolis,31 de março de 2009
Lélia P.S.Nunes