(…cont.)
Se o Bar Jade ficou referenciado como o ponto de encontro ou de tertúlia do grupo, poderá dizer-se que o jornal A Ilha, mesmo não sendo um porta-voz do modernismo (nunca o foi), tornou-se o local mais visível onde ele pôde manifestar-se, um espaço aberto a outros jovens como Eduíno Borges Garcia, Eduardo Bettencourt de Ávila, por exemplo, e à colaboração diversificada que de Portugal chegava. É ainda o local privilegiado para observar o que foi nesses anos o esforço de renovação e também as resistências verificadas: aí está o eco das Conferências do CLAQ e dos recitais de Carlos Wallenstein no Cine Jade e no liceu, trazendo ao conhecimento do público micaelense a moderna poesia de língua portuguesa[1]; aí está o ensaísmo de Eduíno de Jesus, as polémicas literárias entre antigos e modernos (mesmo entre alguns modernos como Jacinto Soares de Albergaria e Pedro da Silveira), e já por 1953 o debate (ou polémica?) motivado pelos cinco textos de Eduíno Borges Garcia reunidos sob o título de “Por uma autêntica literatura açoriana”, os pruridos moralistas provocados pela exposição de Victor Câmara e que justificaram um ensaio de Eduíno de Jesus sobre o problema da moral na arte (10.5.1959) .
A partir de Maio de 1946, Eduíno de Jesus surge nas páginas d’A Ilha e no final da década torna-se uma presença regular, sobretudo como crítico e ensaísta.
Um texto de Eduíno de Jesus, intitulado precisamente “A nuvem e a deusa” (14/03/1953), traça-nos um quadro muito pouco animador das aragens poéticas de Ponta Delgada nessa altura e avança depois para uma reflexão sobre a verdadeira natureza da poesia (que não é uma simples questão de queda ou de jeito) e do poeta (que vai muito para além do simples habilidoso). E denunciava ainda a tendência mais ou menos generalizada para levar à conta de poesia o que não o era, ou seja, para tomar a nuvem por Juno.
O texto não ficou sem resposta: quinze dias depois (28.3.1953) um articulista opinativo que assinava Manuel N. Geada, acusando a leitura do texto de Eduíno, escrevia que muitas «poesias actuais e futuristas» não têm forma nem sentido e alguns dos seus autores até nem são capazes de esclarecer ou interpretar aquilo que escreveram. O mesmo articulista aparecia depois em Abril (18.4.1953), com a prova escrita de que também era capaz de ser poeta modernista, pelo menos modernista ao seu jeito, que era o de fazer prosa aos bocadinhos. E em Maio, já convertido ao espírito do mês, regressava ao sonetozinho clássico, com chave de ouro e tudo: «orando a Nossa Senhora/ viu gente que sofre e chora/ em busca de salvação» (23.5.53).
Textos posteriores de Eduíno de Jesus continuarão esse trabalho de (in)formação e crítica, um deles já referindo nomes que seriam considerados obsoletos noutras partes, mas que por estes lados ainda estavam muito em moda. Percebe-se a persistência do crítico e ensaísta, se se tiver em conta que nos Açores os sapos-tanoeiros, parnasianos, aguados, continuavam a fazer sair dos prelos os seus cancioneiros bem martelados. E por mais aleatória que pareça a alusão a Manuel Bandeira, ela prende-se com o papel que, ao lado dos modernismos português e cabo-verdiano, o modernismo brasileiro desempenhou na consciência literária deste grupo, como ainda há tempos me confessava Eduíno de Jesus em mensagem electrónica (27/01/2006):
«Manuel Bandeira é ainda hoje o “meu” poeta da saudade (a minha grande saudade!) da tertúlia do Bar Jade. Vocês, os rapazes de hoje, não podem ler os “modernistas” do 1º Modernismo português, o de 1915-17, ou do modernismo brasileiro da Semana de Arte Moderna de 22, com a mesma emoção que nós, os rapazes de há 60 anos. Vocês já nasceram “modernos”, não há extravagância estética que não seja familiar a vocês. Mas nós tínhamos nascido românticos (podíamos admitir no máximo as ousadias realistas de um Cesário Verde), quando, de repente, descobrimos Pessoa e o seu entourage paúlico-interseccionista-sensacionista/futurista. Foi o delírio! Os brasileiros vieram logo a seguir. Ler Bandeira em voz alta no Bar Jade e “gozar” o arrepio que isso fazia o auditório bufar, remexer-se nas cadeiras ou pagar a conta e ir bocejar para outro lado, era um prazer malévolo nosso que jamais foi possível sentir de novo depois desse tempo passado.»
Recensões críticas a autores açorianos, ensaios sobre Virgínia Woolf e Afonso Duarte ou sobre o sentido e a função da crítica, quadros panorâmicos da literatura nos Açores e da poesia em particular, um ensaio de longo fôlego sobre a época literária de Roberto de Mesquita (em Portugal e em França) – tudo isso consta das páginas d’A Ilha. E neste domínio ensaístico e crítico, em jeito de aparte e saindo já desses anos cinquenta e da imprensa, será ainda de referir a aprofundada introdução à Antologia de Poemas de Armando Côrtes-Rodrigues, e o Estudo Crítico que acompanha a Obra Poética de António Moreno e constitui por si uma história da poesia açoriana da segunda metade do século XIX e da primeira do século XX. Isto para dizer que há por aí material crítico e ensaístico à espera de uma recolha que lhe dê a visibilidade de conjunto que por ora nos escapa. Para dizer também que Eduíno de Jesus foi/é, entre os seus companheiros de grupo, aquele que mais longe levou uma reflexão sobre a natureza autónoma do fenómeno literário e poético, isto é, dotado de uma especificidade própria, em termos de processo e funcionamento, comunicação e linguagem (enquanto que Pedro da Silveira se orientou predominantemente pela sua vertente histórica e sociológica).
E é verdade ainda que por esses tempos começava a construir-se uma obra poética de invulgar rigor que viria a reunir-se em Os silos do silêncio. Mas isso é ultrapassar os limites temporais que me impus e para lá dos quais existiu, obviamente, mais vida crítica e ensaística. Aquilo que me propus foi, sobretudo, dar conta de alguns traços que marcaram os meados do século XX em Ponta Delgada e dos quais é inseparável a figura de Eduíno de Jesus.
Se me é permitida uma nota pessoal, direi, a terminar, que aquilo que desses tempos continua ainda a tocar-me mais de perto é a atitude de reflexão e prática locais que dialoga com a pluralidade das referências externas, sem complexos e sem a pretensão bacoca de se ser visto «lá fora». Entre o Bar Jade e o jornal A Ilha cabia, afinal, o mundo todo & arredores. Esta será talvez a melhor lição deixada aos que vieram depois. É também a melhor lição que estes poderiam receber dos que vieram antes. Obrigado, Eduíno.
Urbano Bettencourt
Ponta Delgada, 10 de Junho de 2009
Urbano Bettencourt – Professor de Literatura do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores.
Nasceu na Piedade, ilha do Pico (1949). De Raiz de Mágoa (1972) a Antero (2006), ficam cerca de dezesseis títulos de poesia, narrativa e ensaio, além da participação em diversas antologias, nacionais e estrangeiras, e obras colectivas. No domínio do ensaio, tem privilegiado as literaturas insulares. Em Abril último apresentou na Biblioteca Municipal de São Roque do Pico a 2 edição revista do seu livro Santo Amaro sobre o mar, com desenhos de Alberto Péssimo,numa caprichada edição da própria Câmara Municipal. É colaborador da Revista Magma,editada pela Câmara Municipal das Lajes do Pico, tendo coordenado o número 3.
[1] Lá estão, nos recitais de 19 e 23 de Setembro de 1949, nomes como os de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Andrade, Vitorino Nemésio, Violante de Cisneiros/Armando Côrtes-Rodrigues, José Régio, Miguel Torga, os cabo-verdianos Manuel Lopes e Jorge Barbosa, o brasileiro Manuel
Bandeira.
NOTA: Fotos de Célia Carmen Cordeiro