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O mapa Pizzigani atesta a existência das Estátuas
É deveras notável que, nas mais antigas cartas ou portulanos, que remontam ao século XIV, apareça sempre a minúscula ilha do Corvo, de preferência a outras, nomeada como Insule de Corvi marini. A isla de los Cuervos Marinos figura, por exemplo, no Libro del Conoscimiento, do frade mendicante espanhol que, tendo embarcado no Cabo Bojador, num navio mouro, visitou as ilhas perdidas por volta de 1345. Mas, existem mais 28 designações com o mesma nomenclatura nos mapas entre os século XIV e XVI, ou seja, antes e depois do descobrimento dos Açores por Diogo de Silves em 1427.
Assim, nada melhor poderia reforçar a convicção dos portugueses acerca da existência de terras a Ocidente dos Açores do que o estranho achado de uma estátua equestre no extremo noroeste desse rochedo esfíngico do Corvo.
A descoberta da carta náutica feita pelos irmãos Francesco e Dominico Pizzigani em 1367, e descoberta na Biblioteca Palatina, em Parma iria reforçar as referências já descritas sobre a Estátua da Ilha do Corvo e relançar as plausíveis viagens pré-portuguesas pelos construtores do referido monumento lítico. Possuimos hoje cópia desse mapa-portulano graças ao trabalho pioneiro de recolha cartográfica levado a cabo no exílio, em meados na primeira metade do século XIX, pelo 2º Visconde de Santarém, que incluiu este precioso mapa de 1367 no seu monumental Atlas composto de mapas-mundo, portulanos e cartas hidrográficas e históricas.
Estudando este mapa em colaboração com Benjamin Olshin, da Universidade de Filadélfia, o historiador Joaquim Fernandes observou um pormenor desenhado na margem esquerda do referido portulano: no meio do Atlântico, sensivelmente à longitude dos Açores, os autores do mapa haviam inserido uma legenda na vertical e, no topo desta, o desenho de uma figura humana, em meio-corpo, com o braço direito, desproporcionado, como uma bandeira levantada num gesto de aviso; logo abaixo, no interior de um círculo, em jeito de enxerto, duas outras figuras, mais pequenas, parecem dialogar tendo por fundo uma encosta rochosa… que faz evocar o perfil da pequena ilha do Corvo.
No essencial, apesar da investigação desta curiosa ilustração dentro do mapa prosseguir, pode assentar-se na tradução da legenda: “Aqui estão as estátuas diante das Colunas de Hércules e que foram levantadas para a segurança dos marinheiros e que lhes mostra o quão longe é possível navegar nestes mares e que, para além destas estátuas, está o obscuro oceano que ninguém deve atravessar”.
Se juntarmos a esta pista a tradição da historiografia árabe dos séculos X e XI, que aponta para existência de “estátuas” com a eventua função de marcos de delimitação no Atlântico, o caso da ilha do Corvo ganha pertinência.
Descobrimentos antigos e (re)descobertas modernas
Fácil será entender, entre “avistamento”, “descoberta” e “descobrimento”, as diferenças qualitativas evidentes, que vão desta a singela visualização à distância, ocasional, à ocupação humana e exploração sistemática. Pedro de Azevedo, conspícuo historiador do início do século XX, escreveu que “a virtude de uma invenção não está só no seu descobrimento, mas essencialmente na valorização dela”. Por isso, também não teve rebuço em admitir como “doloroso para o amor-próprio português ter de reconhecer que parte das ilhas atlânticas, já muito antes da colonização, haviam sido visitadas por navegadores, provavelmente genoveses ou catalães”.
Sem equívos e generosos, sem dúvida, igualmente se mostraram os nossos mais destacados cronistas seiscentistas – Damião de Góis, António Galvão, João de Barros – que não têm quaisquer preconceitos em aceitar a dupla realidade dos Descobrimentos: os Modernos, do seu tempo, e os Antigos, distinção que o grande humanista e amigo de Erasmo insistentemente faz, alegando claramente na mesma Crónica do Príncipe D. João, que o Infante D. Henrique “determinou mandar descobrir de novo ( subinhado nosso ) estas navegações de que a memória era já entre os homens perdida“. O gesto de Góis é pois um esforço de redimir o testemunho das “cousas antigas”, de contrariar o “descuido e esquecimento em que a antiguidade dos tempos as pôs”, como salienta.
Por tudo isto, e somando as evidências e as hipóteses equacionadas, Lúcia Lacroix, uma das personagens centrais da ficção de “O Cavaleiro da Ilha do Corvo”, argumenta:
“É fácil, demasiado fácil, encarar os relatos das ilhas perdidas e viagens lendárias como um desperdício de tempo, lixo a-histórico, do foro dos mitos e das fábulas sem motivo. Pelo contrário, estas narrativas revelam-nos rotas de navegação entre as ilhas Canárias, os arquipélagos do Norte Atlântico, Groenlândia, Islândia e talvez aos Açores e Madeira. Conhecimento mítico, sem fundamento ? Ou antes “memória genética” de episódios que definharam na memória das gerações na ausência de suportes reprodutíveis de memória, como os de hoje? Seja como for, essas “histórias” integram-se, na justa medida, na História”.
Bibliografia
Fernandes, Joaquim, “O Cavaleiro da Ilha do Corvo”. Lisboa, Temas &Debates/Círculo de Leitores, 2008.
Sobre o autor
Joaquim Fernandes é professor na Universidade Fernando Pessoa, Porto, co-fundador do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, (CTEC) nesta Instituição e co-editor da revista Cons-Ciências, editada por este Centro, na UFP. Licenciado em História e mestre em História Moderna, com um trabalho sobre a Religiosidade e Espiritualidade em Portugal no século XVII. Doutorou-se na área da História das Ciências com uma tese sobre o tema o “Imaginário Extraterrestre na Cultura Portuguesa – do fim da Modernidade até meados do século XIX”, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a primeira da sua temática na Academia portuguesa e europeia.
Interessa-se particularmente pela antropologia religiosa comparada, com destaque para os fenómenos da religiosidade popular e da espiritualidade. Mais recentemente tem vindo a estudar aspectos menos conhecidos da história das ideias e das ciências, da evolução dos modelos científicos, em particular no que respeita às diferentes cosmologias e visões do mundo, e o debate entre ciência e religião. Entre os mais recentes projectos de investigação contam-se a identificação e caracterização das fontes e correntes do pensamento heterodoxo e alternativo no Porto, desde o último terço o século XIX até ao fim da I República.
Trabalhou na área da Cultura, no Jornal de Notícias, onde criou rubricas de divulgação científica e cultural, sendo autor de dezenas de artigos de divulgação. Participa regularmente em programas de TV e Rádio sobre “fronteiras da Ciência” e escreveu várias obras de investigação histórica e religiosa, algumas delas em curso de tradução para os países de língua inglesa. Dirigiu publicações periódicas diversas, como a revista Anomalia, e é membro de vários organismos internacionais, como a Society of Scientific Exploration, da Universidade de Stanford, da Society for Science Frontier, da Universidade de Temple, da History of Science Society e da ESSSAT (European Society for the Study of Science and Theology). É coordenador internacional do “MARIAN Project” que estuda as dimensões culturais e científicas dos fenómenos religiosos e aparicionais, como Fátima.
Desde 1997 que tem promovido a realização de vários congressos internacionais subordinados ao título genérico de “Fronteiras da Ciência”, na Universidade Fernando Pessoa, e colaborou na organização da conferência “Ciência e Consciência”, proposta pela Fundação Bial, integrada no programa do “Porto 2001, Capital Europeia da Cultura”. Mais recentemente organizou a edição de uma antologia de ensaios sobre “Newton Herético”, em co-autoria com José Manuel Anes. Em 2007 e 2008 editou nos Estados Unidos ( Anomalist Books ) uma trilogia de obras sobre os fenómenos de Fátima e mais recentemente publicou o seu primeiro romance histórico, O Cavaleiro da Ilha do Corvo a que se seguiu já O Grande Livro dos Portugueses Esquecidos, ambos com a chancela Temas& Debates/Círculo de Leitores. Tem já pronto para o início de 2009 uma outra obra, Mundos, Mitos e medos. O Céu na Poesia Portuguesa e prepara “A Noite do Fim do Mundo”, uma reconstituição dramatizada do maior momento de pânico colectivo vivido em Portugal, nos primeiros meses de 1910, com a aproximação do Cometa Halley.
Organizou ainda, entre Outubro de 2007 e Maio de 2007, um ciclo de conferências “Fronteiras do Conhecimento”, em parceria com a Livraria Almedina, no Arrábida Shopping.
Está biografado no Dicionário das Personalidades Portuenses do século XX (Porto Editora, 2001).