A 16 de Junho passam dez anos sobre a morte de David Mourão-Ferreira. Cultor, como poucos, da memória e da simbologia dos números redondos, o autor do poema «Dez Vezes Quatro» haveria de gostar de saber, que nesta primeira década, após o seu desaparecimento físico, a sua memória se mantém viva.
No que respeita ao seu Espólio, direi que este foi classificado e acondicionado em caixas que cobrem trinta e três metros de estantes, encontrando-se no essencial organizado, graças ao trabalho da equipa por mim coordenada e que contou com a colaboração de Pilar Mourão-Ferreira, António Sampaio Pinho, Helena Real e Maria Eunice Dias. Do essencial deste trabalho dei conta em artigo publicado no n.º 5 da revista Leituras, órgão da Biblioteca Nacional. Autor conhecido e reconhecido por muitos dos nossos melhores ensaístas é, fundamentalmente, aos jovens e outros potenciais leitores que o presente texto se dirige.
Lisboeta nascido em 1927 e falecido em 1996, David Mourão-Ferreira é uma das mais fascinantes e multifacetadas personalidades literárias do século XX: pela qualidade da sua inteligência, pela amplitude da sua imaginação, pelo fascínio da sua presença, pelo palpitante pulsar da sua escrita sedutora, como escreveu Eugénio Lisboa, em texto de homenagem após a morte do escritor. A sua Obra configura-se em todos os géneros literários: poeta, romancista, novelista, contista, dramaturgo, ensaísta, cronista, tradutor, crítico literário, conferencista, além de actor e professor. Foi também uma das mais mediáticas figuras da divulgação da literatura nacional e estrangeira, na rádio e na televisão, onde apresentou variados programas: Miradouro, Momento Literário, Música e Poesia, Hospital das Letras; Imagens da Poesia Europeia, o mais conhecido, manteve-se ao longo de 135 emissões, entre Julho de 1969 e Maio de 1974. De parte destes programas sairia, com adaptações, o volume Imagens da Poesia Europeia, há muito esgotado e que urge reeditar, acrescentando-lhe os fascículos que foram ainda organizados e publicados autonomamente por David. Também daqueles programas televisivos, que compreendem mais de um milhar de folhas, em devido tempo organizadas pela minha equipa, saiu grande parte das traduções de poesia que Joana Varela publicou nos números 163, 164 e 165 da Colóquio-Letras (2003) e que é urgente publicar também em livro, para que um público mais vasto possa ter acesso a este admirável trabalho de David Mourão-Ferreira.
O seu magistério marcou sucessivas gerações de estudantes, muitos dos quais se contam hoje entre as figuras mais prestigiadas da Universidade portuguesa e do ensaísmo literário. Ainda assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, elaborou o programa da então recém-criada cadeira de Teoria da Literatura, desenvolvendo, na década de 50, estudos pioneiros, entre nós, sobre o new criticism e os formalistas russos. Viria também a desempenhar funções políticas, como secretário de Estado da Cultura, a seguir à Revolução de Abril (1976 e 1979), sendo, à data da morte, professor catedrático convidado daquela Faculdade e director do Serviço de Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, aí dirigindo também a revista Colóquio-Letras.
Publica os primeiros artigos, em 1942, no jornal Gente Moça, órgão da Associação de Estudantes do Colégio Moderno. As primeiras poesias viriam à luz nas prestigiadas páginas da Seara Nova, em 1945. Todavia, é pelo teatro que o seu nome começa a aparecer com alguma regularidade nos jornais, a partir de 1948, inicialmente, como actor e, depois, como autor, no Teatro Estúdio do Salitre, onde viu encenadas as suas peças Isolda e Contrabando, respectivamente, em 1948 e 1950. Ainda neste ano, funda, com António Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, as folhas de poesia Távola Redonda, em cujas edições daria à estampa o seu primeiro livro de poesia – A Secreta Viagem. David Mourão-Ferreira foi, com Alberto de Lacerda, um dos mais fecundos teorizadores da revista, como bem mostrou Fernando J. B. Martinho, defendendo o equilíbrio, a coerência e a proporção entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas, procurando conciliar os valores da tradição e da modernidade, revalorizando o lirismo, recusando a imediatez da inspiração e o aproveitamento da poesia para fins utilitaristas. Este ideário ver-se-ia plasmado na sua futura Obra, a qual, do ponto de vista técnico, representa a feliz aliança da força criadora e da construção rigorosa, sendo geralmente considerado como detentor da melhor oficina poética da sua geração.
Até à publicação de Um Amor Feliz, em 1986, David insistia em dizer que tinha consciência de que a sua Obra não teria um vasto público, mas que, em contrapartida, possuía leitores fiéis. Este romance viria a aumentar-lhe o número desses leitores, pois ainda hoje continua a ser objecto de sucessivas reedições. Num caderno de bolso, encontrei esta curiosa síntese, escrita por David, no dia seguinte à conclusão do romance: “Um Amor Feliz: um cântico de amor e de paixão erótica; uma sátira política a certa nova sociedade portuguesa; um romance do romance em que se vêem acareados o narrador e o autor; um ajuste de contas comigo mesmo.”
(Continua…)
Foto:PPorto Museu