Foto 1 – Autor recebido em cortejo, no dia de lançamento do livro
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Era Dia de São Vapor, na linguagem dos angrenses, porque este santo não fazia parte do calendário da Ribeira de Fogo. Só os olhos do Morcela o perseguiam a rasgar as ondas e na sua imaginação o visitava.
– Como é que aquela gente toda se acomoda ali dentro? – perguntou a tio José Carrapito.
– Eles dormem em quartinhos pequeninos, em que uma pessoa mal se pode mexer. E as camas são como aquelas dos presos da cadeia, em cima umas das outras.
E foi numa jaula flutuante que João Caracol, Conceição e a filha, Lucy, regressaram à ilha. E foi com falta de ar e o estômago caldeado da viagem que se debruçaram na amurada. João levou alguns minutos a apreciar o Monte Brasil, sentinela da cidade. Apresentava-se mais soberbo, coberto de uma verdura luxuriante. À primeira vista, a cidade pouco crescera e a Memória lá estava suspensa como um farol. Nela – “A nossa Estátua da Liberdade”, como dizia o professor Noronha – deixara o coração ancorado, na partida.
Mal pôs os pés na lancha, colou os olhos na multidão apinhada no cais da alfândega. Por uns momentos, ainda pensou que a freguesia estava ali em peso, à sua espera. Pura ilusão. A maior parte daquela gente não esperava ninguém ou esperava-se a si própria. Ali acorria, para se ligar ao mundo, para se irmanar na alegria dos que chegavam de cabeça arejada. Com a força do hábito, acabava por viajar, repetindo comentários ouvidos: “A Torre de Belém é a coisa mais linda do nosso país. O Estádio da Luz mete o de Alvalade numa algibeira.”
Nesse dia, o Morcela voltou a ver o governador civil. Desembarcou na primeira lancha, na companhia de pessoas engravatadas. Muito aplaudido, muito cumprimentado por um batalhão de funcionários públicos, dispensados do serviço para o receberem sob a liderança do doutor Ávila. Era o amor e o respeito pelos nossos governantes a esbanjar-se a rodos pelo cais. Havia ido a Lisboa tratar de assuntos decisivos para o desenvolvimento da terra. Na pasta levara uma série de projectos; nos ouvidos trazia uma série de promessas, como tantas outras esquecidas nas gavetas ministeriais. Mas não desistia de pedinchar uma migalha que fosse. Uma ilha teimosa que se achava com direito a ter um hospital, um Palácio da Justiça, um liceu novo, luz e água canalizada. E assim andava ele, cá e lá, com o mesmo fatinho a roçar-se no portaló do Carvalho Araújo. O mesmo fato com que o vira na Ribeira de Fogo, mas outro sorriso: o sorriso de quem acabara de levar um banho de civilização.
– Ah, meu rico filho! Pensava que nunca mais te via!
Os gritos ecoaram pela rocha do Cantagalo e as lágrimas diluíram-se nas ondas da baía. Uma baía habituada a ver partir os filhos da terra, com sonhos e esperanças a pulsar no peito constrangido. Em breves instantes, refizeram os laços desatados pelo infortúnio e afogaram as saudades num beijo profundo que enche a alma inconformada.
Apinhados de malas, os carros de praça partiram ronceiros pela estrada do mato. João Caracol, apegado à mãe no banco de trás, deixou a vista espraiar-se. Terrenos, outrora baldios, haviam sido revirados até ao cimo dos cabeços pela força dos tractores e transformados em pastagens viçosas. Pastos, cada vez mais pastos e vacas. Que era feito das terras de semeadura?
No alto do Cerro, o carro parou por uns instantes. Apeou-se, agarrou um punhado de terra e acariciou-a entre as mãos como se fosse uma relíquia sagrada. Aos seus pés, estendia-se a encosta das ladeiras, com as sebes dos pomares alinhadas, o casario, o campanário e as canadas a convergir na praça. Com a lágrima a rolar pela cara, desabafou:
– Daqui ninguém me tira.
Tio Jerónimo prosseguiu viagem. Fazia questão de chegar primeiro, para lançar os foguetes encomendados por João Caracol.
Compra-me uns foguetes de lágrimas para atirar no dia em que eu chegar que é para me lembrar das que chorei estes anos todos que estive aqui na América.
Cumpriu a promessa e entregou-lhe, à entrada do portão, a chave do seu novo lar, cujas obras havia dirigido.
– Nosso Senhor te dê saúde para o gozares por muitos anos.
Um enorme rebuliço espalhou-se por toda a Ribeira. Nas primeiras semanas, a família de João Caracol andou num lufa-lufa com as arrumações e os cumprimentos dos vizinhos. Uns por amizade sincera, outros apenas por interesse, entraram com embrulhos de papel fino; à saída, carregavam saquinhos de papel pardo, a cheirar a outro mundo da banda de lá do mar. Todos receberam uma lembrançazinha, de acordo com os sentimentos ou a retribuição de favores.
– Estás a ver a consideração que ele tem por mim? Gastei massame de dinheiro, a comprar um quilo de açúcar e uma garrafa de vinho abafado, para receber em troca estas peúgas e estas meias de vidro. É bem feito! Quem me manda ser tola?
A família do Morcela, por amizade do berço, mereceu toda a consideração. Os dois rapazes fizeram sucesso com umas camisas vermelhas bordadas a fio prateado, um cinto de cáboia e um canivete com uma corrente para pendurar na alheta das calças. Tio Jerónimo foi obsequiado com uns alvarozes[1] confortáveis para andar nos pastos, um boné, uma suera[2] de lã e uma miniatura da Estátua da Liberdade. As raparigas ficaram prezadas com uns vestidos enramados, “coisa de luxo, própria de meninas da cidade”, uma mala e um par de óculos escuros, com brilhantes nas cangalhas. Tia Mariana recebeu uma camisa de dormir (em nylon cor-de-rosa, com rendas e folhos) e umas jardas de tecido polyester. “Que rica fazenda! Hei-de amanhar uns vestidos para as festas.” A camisa nunca a usou. Não estava habituada nem queria sentir o corpo acariciado por uma onda tão macia. Com toda a certeza, iria passar as noites sem pregar olho.
A afluência de visitantes não deu hipóteses a Conceição de desemalar toda a bagagem. A curiosidade fervia na ponta das unhas, quando punham o pé da banda de dentro da porta.
– Ah, mô, parece que trouxeste a América contigo!
– Oh, agora cá, isto é só os precisos para estes dias. Na próxima semana, vou levantar o resto na alfândega.
– E vais precisar de muita coisa. Vocês fizeram aqui um palácio que é um luxo. Ninguém diz que é a casinha onde João nasceu.
Claro que não. Do velho casebre sobrava apenas a fachada. Antes de regressar, João Caracol desenhara a planta da casa e pedira a tio Jerónimo que contratasse os pedreiros. Com os tabiques deitados abaixo, fez uma sala de estar, um quarto de jantar, ampliou a cozinha e acrescentou três quartos de cama; no lugar do cu do forno, construiu uma casa de banho e, no fundo do quintal, levantou uma caixa de água, de cimento. Não estava disposto a acarretar baldes às costas e a perder noites nos períodos de seca, como antigamente.
Trouxe consigo uma boa parte da mobília, colchões, tapetes, cortinados, lençóis e muitos utensílios de cozinha – coisas usadas, mas de boa qualidade e modernas, como afirmavam bastas vezes as vizinhas. Ao fazerem comparações com as casas mais ricas da freguesia, o colorido da de João Caracol levava-lhes a palma: sofá de veludo alaranjado, cortinados e sanefas enramados, um lustre como o da igreja (cheio de vidrinhos e muitas lâmpadas), umas carpetes coloridas e bibelots pintados de dourado.
A incompatibilidade entre as duas correntes eléctricas ia estragando a alegria de Conceição. Foi obrigada a comprar um transformador que lhe permitiu ligar algumas peças adquiridas: o
frigorífico (um dos primeiros nas redondezas), o aspirador (objecto até então desconhecido) e um móvel-bar com gira-discos incorporado. Um autêntico prodígio a reproduzir música com uma agulha a lavrar os carreirinhos de um disco preto. Todo o santo dia, Amália Rodrigues e Fernando Farinha quase enrouqueciam a cantar “Uma Casa Portuguesa” e “Amor de Mãe”.
A frescura da casa de banho deixou toda a gente boquiaberta: uma tijoleira com losangos verdes, uns azulejos brancos a cobrirem metade da altura das paredes e umas torneiras cromadas a brilharem como espelhos. Tia Mariana não vislumbrou de imediato a utilidade do bidé. A explicação da dona da casa, segredada ao ouvido, arrancou-lhe um sorriso contrafeito e uma onda de calor no rosto.
– Oh, e aquela banheira é para a gente tomar banho geral.
– E tu tens coragem de te lavar em coiro? – interrogou aflita, ao imaginar-se toda despida, pois só estava habituada a lavar-se por partes: a cabeça e os sovacos, uma vez por outra; a zona genital, diariamente, mas sempre composta. Nos seus tempos de rapariga nova, nunca se despira para o seu Jerónimo, nem ele o exigira. Fora educado a estabelecer a diferença entre uma esposa e uma mulher da vida. Quando a solicitava à noite, fazia-o dentro das regras da decência. Causava-lhe espanto que Conceição, uma mulher séria, tivesse o descaramento de se pôr nua, como veio ao mundo, para tirar o suor do corpo.
– Yá! Qual é o problema? Ninguém me vê.
Para tia Mariana não era tanto o problema dos outros a verem, porque havia de trancar a porta com o ferrolho, mas o de ela se ver a si própria. Só de pensar no assunto, ficou afrontada.
As outras vizinhas, mais descaradas, riam e galhofavam com Conceição:
– É como no cinema. Ah, quem tivesse nascido numa terra de abundância como aquela.
– Olha-me este colchão que não faz covas! Se me apanhasse lá, nunca mais me lembrava disto aqui. Fraco gosto, virem-se embora.
– Oh! Yá! Viemo-nos embora nanja por estarmos mal, mas João perdeu o gosto pela América, por causa de Luciano.
Acesas e emocionadas discussões marcaram a história da relação dramática entre os dois. O Morcela ouviu-a vezes sem conta, reinventada em todos os rebecos ou contada por João, na loja de tio Jerónimo. Foi ali que, durante muitos serões, deslindou toda a sua aventura de emigrante, gravada minuto a minuto na memória.
Na versão do pai, Luciano era um doidivanas rendido ao cheiro das raparigas. Quando começou a trabalhar, ninguém o segurava em casa aos fins-de-semana enquanto o dinheiro tilintasse no bolso. Ia para o cinema com os amigos (“Lá, o cinema não é como aqui: as pessoas vêem as fitas sentadas no carro”) e acabou por andar no restolho com umas americanas muito liberais. Entrava a porta a altas horas, com uma pinga a mais de bebida, e os desatinos sucederam-se até ao dia em que a paciência do pai se esgotou. Deixou-se de cortesias, desprendeu o cinto e descascou à moda da sua terra. O rapaz, com o corpo cheio de vergões, faltou ao emprego. Submetido ao interrogatório do chefe, relatou-lhe o sucedido. Num encontro fortuito com o capataz, João recebeu uma ameaça que o deixou aparvoado e a pensar consigo: “Mas que raio de terra é esta, em que um pai já não pode dar educação à sua maneira?”
Não suportou ver Luciano amigado com uma americana, divorciada e com duas crianças. Num acto de desespero, botou-o fora de casa. As habilidades de Conceição não foram suficientes para que reconsiderasse a atitude despropositada. “Não criei um filho para andar a sustentar os filhos dos outros” e não recuou.
[1] Overalls – calças de ganga com peitilho
[2] Sweater- camisola grossa
(cont…)