Na arte da Rendeira a sabedoria de quem conhece o segredo das marés, a humildade de quem nasceu junto ao mar, profundo, eterno, berço das sereias e alçou vôos nas asas da gaivota, cruzando o céu à procura do homem amado. Traz no olhar a serenidade de quem aprendeu com o canto das marés a ver a vida passar sem pressa entre os fios tramados da rede e da renda.
No enredar dos fios, imagens e histórias tecidas sobre a almofada da renda de bilro que as mãos da mulher entrelaçam docemente como se tecesse a vida de sua gente e deixasse nas mãos do mar as esperanças do amanhã.
Ensina com sua arte secular, a justaposição da memória coletiva de uma certa antropologia da intuição, a arquitetura da renda, num antigo ritual de celebração telúrica, poética e mítica no entrelaçar de linhas e bilros por trilhas da Ilha e do continente ali em frente.
A linha flana suave no tempo, nos lugares, nas gerações, enquanto bilros voam ágeis na memória quase esquecida e, agora, renascida em olhares rendados da mulher. Mãos enrugadas, mãos jovens, sem idade, tecem o mapa da nossa geografia de afetos e cantam o mar, o vento sul, a rosa, o cravo, o manjericão, a nossa história cultural.
A produção da renda de bilro fez da Mulher Rendeira um dos ícones culturais da Ilha de Santa Catarina pela beleza de sua arte no entrelaçamento de fios na almofada que sustenta com alfinetes o intricado desenho do “pico”, enquanto o homem-pescador vai ao mar,afinal “onde há rede há renda” ensina o dito popular.
No distante dia 21 de outubro de 1747 partiu do porto de Angra, na Ilha Terceira, Açores, a primeira leva de casais açorianos que atravessando a vastidão oceânica, cortando hemisférios conquistou as terras do seu destino: o extremo sul do Brasil. Era o início da grande saga de um povo, que deixou para trás o mundo pequeno de suas ilhas de origem, São Jorge, Pico, Faial, Graciosa, Terceira, São Miguel para desbravarem os amplos espaços nas planuras litorâneas de Santa Catarina. Depois de uma longa jornada, os açorianos entregaram à terra que os acolhia a sua esperança e a sua fé no Novo Mundo. Era o início da nossa história.
Hoje, dia 21 de outubro de 2009, exatamente há 261 anos da histórica partida da primeira leva de açorianos do porto de Angra, Ilha Terceira, em sessão solene realizada na Câmara de Vereadores de Florianópolis, presidida pelo vereador Gean Loureiro, o Prefeito Municipal, em exercício, João Batista Nunes, de antecedentes açorianos da Ilha de São Jorge, assinou o Decreto Lei que institui o Dia da Rendeira. Um Projeto Lei de autoria do vereador Edinon Manoel da Rosa que apresentado em plenário a partir de uma solicitação da Casa dos Açores Ilha de Santa Catarina, foi aprovado por unanimidade.
Em sua justificativa, o vereador, que também é descendente de açorianos e sócio da Casa dos Açores, afirma pretender homenagear a mulher da Ilha e a atividade artesanal mais tradicional, parte da herança cultural deixada pelos emigrantes açorianos do século XVIII e visível por todo litoral de Santa Catarina e muito especialmente por Florianópolis, a cidade capital e o interior da Ilha de Santa Catarina. Com a criação do Dia da Rendeira o vereador deseja sensibilizar e estimular o poder público municipal a promover ações de valorização do patrimônio cultural de natureza imaterial aqui representado pela tradicional renda de bilros e na arte da mulher rendeira, destacando sobretudo a “renda tramóia” a única registrada no País e muito provavelmente no Mundo.
O advento da lei coincide com a aprovação, pelo Ministério da Cultura, na semana que passou, de projeto que cria a Casa da Rendeira, que ficará no Centro Cultural Bento Silvério , o “Casarão da Lagoa”, na Lagoa da Conceição. A Casa sediará uma cooperativa de rendeiras e está previsto a realização de um inventário qualitativo e quantitativo da Renda e um censo das rendeiras de Florianópolis. Outro objetivo é fazer com que rendeiras façam oficinas de arte-educação nas escolas e associações, ensinando sua arte às novas gerações, garantindo sua continuidade e investindo no futuro.Cabe registrar que no ano de 2002 as Oficinas de Renda,oferecidas pela Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, receberam Menção Honrosa do IPHAN, Prêmio Melo Franco, concedido pelo Ministério de Cultura e, ainda, escolhidas como uma das Dez Melhores Práticas Culturais de Inclusão Social do Mercosul, pela Rede das Mercocidades,UT Cultura
Uma sessão solene para ficar na história. Marcada por momentos de muita emoção e pela presença de um número significativo de vinte três mulheres- rendeiras que ocuparam o Espaço Cultural Martinho de Haro da Câmara Municipal com suas almofadas coloridas fazendo renda e cantando cantigas típicas da Ilha.
A CAISC – Casa dos Açores Ilha de Santa Catarina, fundada em 1999, idealizadora do Dia da Rendeira congrega as comunidades de cultura açoriana da Ilha de Santa Catarina e do litoral catarinense. Há dez anos, essas raízes seculares vêm sendo alimentadas e revigoradas com o trabalho dedicado de voluntários, estudiosos, pesquisadores, artistas, artesãos promovendo ações culturais e sociais para a valorização da herança açoriana sobrevivente e para a difusão da açorianidade.
Talvez seja esta a única Casa dos Açores que abriga memórias, saudade, lembranças, tradições transmitidas pela oralidade – o patrimônio espiritual do nosso povo. Uma gente que é açoriana por um legado de 261 anos que foi passado por gerações e alcançaram o século XXI com a mesma força daqueles ilhéus que no arquipélago açoriano nasceram. Um cordão umbilical tão tênue como o fio da renda tecida sobre a almofada de bilro.
Florianópolis,Ilha de Santa Catarina
21 de outubro de 2009
Legendas Fotos: Assinatura do Decreto Lei, Autoridades Municipais e Pres.Casa dos Açores Ilha de Santa Catarina, Espaço Cultural Martinho de Haro,Câmara dos Vereadores
Créditos: Édio Hélio Ramos (I,II).Mena Wendhausen (III)L.Nunes(IV)