1 – … a aparente imutabilidade do destino humano
Talvez por ser cada vez mais complexo escolher plataformas consensuais para projectar os conceitos de ficção pura, o livro Flagelados do Vento Leste é uma interpretação neo-realista do segredo oculto nas noites vazias da saga da sobrevivência de um povo singular. O escritor Manuel Lopes apercebe-se, genialmente, de que a aparente imutabilidade do destino humano tem mais a ver com a alienação sistemática das vontades, do que com as arbitrariedades climáticas da geografia.
O romance é inspirado no quotidiano da vida popular em Cabo Verde antes do advento da sua independência política. Manuel Lopes reconhece que os desígnios da geografia foram ampliados e perpetuados pelos condicionalismos impostos pela arrogância colonialista. Todavia a sua narrativa não precisa da bengala ideológica para se guindar às alturas da justiça. E como o seu discurso artistico não sofre da gaguez do medo, a realidade do seu tempo ainda nos chega com o travo d’aventura.
Tudo se resume na espera da chuva no patamar do cadafalso ameaçador da fome que engorda a fé: a ameaça das calmarias de braço dado com a lazeira do relógio da vida; a violência indiscriminada das lestadas é vista como desconto no rol dos pecados; o sentimento ilhéu embalado no trinado “fado-crioulo-coladera” promovido a hino-gemido regional de um povo sumido no seu desgosto claustral.
Em breves pinceladas solidárias, aí fica a realidade trágica cuja secular imutabilidade o caciquismo lusitano fingia ignorar…
2 – Do Livro “Os Flagelados do Vento Leste”:
– Grito de alarme? Denúncia? Elegíada do Ilhéu Cabo-verdiano?
No prefácio do seu livro, o autor apressa-se a relembrar o comentário dum intelectual cabo-verdiano, segundo o qual, nos planos da natureza em relação àquelas ilhas, “não entrava, ao que parece, a existência humana“.
Como fiel adepto e praticante do neo-realismo, Manuel Lopes não se limita a reportar aquilo que vê. O escritor raciocina o que sente, porque é conhecedor exímio do micro-clima, da topografia, dos recantos inóspitos do interior da ilha. Mais: sabe de linguística, da silhueta fisiológica dos famintos, da psicologia das almas mirradas pelo isolamento…
Como que a desafiar o exclusivismo da tipocromia queiroziana, Manuel Lopes surge-nos como “criador de tipos“, comparando a coragem de uns com a pusilanimidade de outros: os que enfrentam o harmatão e os cornos dos fados, como Nhô Manuelinho, conhecido como o Ti Manelim, viúvo e velho; José da Cruz que, no seu delírio cíclico, sonha com anjos com baldes de água; João Felícia, símbolo da fraternidade na desgraça. (O romance também fala de gente malfazeja, como é o caso singular do Saltapedra, ou do famigerado Leandro cuja cicatriz física é a marca de “pecado original”). A aceitação tácita das balizas do destino impressiona vivamente o escritor, que coloca nos lábios de José da Cruz, o seguinte: “… o destino é um enviado de Deus. Quem vê escuro, para diante não vê nada.”
Manuel Lopes singulariza o falario dos ilhéus, durante o chamado “tempo de cedura“. E, dado que é vital poupar o milho da sementeira, a frugalidade é quase uma religião: “homem direito não põe a boca na dívida sagrada, para não virar ladrão de Deus…” Além disso, Lopes fala-nos dos que, apostados na aleluia das chuvadas, têm de “semear pó“… sem esquecer o drama da maternidade não planeada – como é o caso daquelas mães solteiras que vão “desencabrestar” em casa alheia. Na solidão altaneira do interior da ilha os guardadores de gado “podem escutar as estrelas a crepitar, como lenha a arder, tão perto se sentem delas…“
Como personagem contrastante pela sua presença aérea e quase vegetal, temos a professora Maria Alice: uma espécie de ambulância dos primeiros socorros ao analfabetismo endémico. Na sua dulce militância contra a ignorância, a professora Alice sonhava encher a cabeça de gente com estômago vazio. “A lua tem o poder de apagar umas coisas e acender outras” – escreve Lopes.
… Um certo dia a alegria veio molhada. A chuva ensopou o chão! Agora, as bagas de água e as lágrimas de alegria são como irmãs gêmeas. O escritor avisa que era preciso saber esperar que “os olhos das plantas furassem a terra, para mandar os meninos retirar as pedras das covas”. De agora em diante era preciso “governar o cinto da barriga conforme Deus fosse servido…”
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(*) Durante a II Guerra Mundial, Manuel Lopes viveu na cidade da Horta – Faial, tendo convivido com o poeta e escritor açoriano Pedro da Silveira.
João-Luís de Medeiros é natural da ilha de São Miguel, Açores, e vive nos Estados Unidos desde finais de 1980. Antes de emigrar, trabalhou no sector privado empresarial, e após a instauração da Democracia em Portugal, foi eleito parlamentar à Primeira Legislatura da A.L.R. (Horta, Faial, 1976); mais tarde, serviu como representante açoriano na Assembleia da República (Lisboa, 1978). As suas publicações em poesia e prosa estão dispersas algures em jornais e revistas da diaspora lusófona. Desde 1976, é colunista-convidado da imprensa comunitária (coluna Memorandum). É co-autor do livro Em Louvor do Divino (1993); recentemente, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado (Re)verso da Palavra (2007). João-Luís de Medeiros é licenciado ‘cum laude’ em Humanidades e Ciências Sociais (University of Massachusetts, Dartmouth); mais tarde, obteve o Mestrado em Ciências de Recursos Humanos (Chapman University, Orange, California).