Dois Trechos do BATUQUE BEM TEMPERADO nos quais um Autor fala do Outro:
Às três e trinta, com apenas hora e meia de atraso, ela chegou. Não era bem como eu a havia imaginado, gordinha e nos seus vinte e dois anos, nem como a imaginou minha mulher, ossuda e com pelo menos cinquenta. Desde que o Jair, sabedor de nossas pretensões, me disse que tinha falado com uma tal de Leocádia e que ela estaria conosco amanhã às duas em ponto para trocar idéias sobre o assunto, ficamos a desenhá-la mentalmente. Minha mulher chegou a vê-la em sonho, vestida de verde e com uma estrela na cabeça. Eu, mais moderado, apenas esperei, confiando que o bom Deus nos dava enfim uma grande oportunidade. E ali estava ela: Dona Leocádia, nem gorda nem magra, quarentas anos prováveis, vinte vezes mais feia que bonita, mas nada disso interessava, pois mesmo que estivéssemos diante da suprema feiúra do universo nós a faríamos entrar festivamente.
– O Dr. Jair pediu que eu viesse aqui.
– O Jair é um santo amigo, poxa.
(Flávio José Cardozo, na crônica “Entrevista com a mulher que o Jair mandou”)
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Sabes, Flávio, naquele tempo, a gente dizia assim: quando eu for grande, quero ser tal coisa. Variava muito: aviador, bombeiro, médico, sargento da polícia, barbeiro, advogado, chofer de ônibus, professor, sapateiro.
Por exemplo: o Chico sonhava ser goleiro do Figueirense; o Dagmar, que era canhoto, queria ser ponta-esquerda do Avaí. Já o Joca, muito esganado, queria ser o dono da Padaria Brasil só para que, dia e noite, enchesse o pandulho de doce, empada, cocada.
Era época da guerra. Bombardeios na Inglaterra, bombardeios na Itália, bombardeios na Alemanha. Chovia bombas na Europa. Havia uma revista, chamada Em Guarda − lembras, não é? − que estampava fotos de simpáticos e sorridentes aviadores ianques, vestindo roupas de couro, toucas de couro e com óculos reluzentes. O Xandoca queria ser aviador, Flávio.
(Jair Francisco Hamms, na crônica “Um bombardeiro azul”)
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Os autores:
Flávio José Cardozo nasceu em Lauro Müller, SC, em 1938. Frequentou o Curso de Jornalismo da PUC-RS. Trabalhou na Editora Globo de Porto Alegre, foi diretor da Imprensa Oficial de Santa Catarina e da Fundação Catarinense de Cultura. É membro da Academia Catarinense de Letras.
Escreveu os livros de contos Singradura, Zélica e outros e Guatá. Como cronista publicou Água do pote, Beco da lamparina, Tiroteio depois do filme, Senhora do meu Desterro, Trololó para flauta e cavaquinho (com Silveira de Souza), Uns papéis que voam, Duas violas arteiras (com Sérgio da Costa Ramos) e Sopé (com o desenhista Tércio da Gama). Na área da literatura infanto-juvenil, publicou O tesouro da Serra do Bem-bem.
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Jair Francisco Hamms nasceu em Florianópolis, SC, em 1935. Formado em Direito, atuou na publicidade, no jornalismo e no magistério superior. Na Universidade Federal de Santa Catarina, exerceu diversas funções administrativas, entre elas a de Chefe de Gabinete do Reitor e de Diretor de Intercâmbio e Extensão Cultural. Pertence à Academia Catarinense de Letras.
É autor dos livros Estórias de gente e outras estórias, O vendedor de maravilhas, O detetive de Florianópolis, A cabra azul e Samba no céu, todos de crônicas. Publicou também o ensaio Santa Catarina, um caleidoscópio étnico. Sua crônica “A Sobrinha da Senhora Dodsworth” deu origem ao premiado curta-metragem Alumbramentos, de Laine Milan.
Referências: Batuque Bem Temperado,Ed.Insular e ACL,Florianópolis,2009