A Velhice do Pai Natal
Hélio tinha o sono leve. Dizia ser da velhice, a chegar em passada larga, mas aos amigos não escapava a relação directa desse sono ligeiro com as suas angústias acerca do futuro. Tinha dúvidas sobre a solidez da sua posição numa empresa tão exigente quão impiedosa. Passara já dos cinquenta e aterrorizava-o a perspectiva de ver um jovenzinho executivo, “com o cu das calças ainda a cheirar aos bancos da universidade”, convencer a Administração da sua, dele, Hélio, dispensabilidade, em favor de um estagiário a salário mínimo ou, mesmo, de uma maquineta qualquer.
Hélio já ia nos quase trinta anos de trabalho, mas sabia que esse cúmulo de muito pouco lhe serviria na hora da decisão sobre o seu valor actual. Não tendo as empresas memória e, muito menos, coração, Hélio pensava ter motivos de sobra para se preocupar. À noite, dormia como sobre brasas.
E foi por isso que, naquela noite de Natal, ouviu um ruído estranho, vindo da sala. Pareceu-lhe a queda de algo macio, embora pesado. Chegou a pensar que o gato derrubara os jornais e revistas que deixara sobre uma das poltronas, mas um leve gemido acabou com as especulações. Estava alguém lá em baixo!
Desceu as escadas como um felino, sem ruído, e entrou, decidido, na sala. Junto à lareira, deitado sobre o seu lado esquerdo, um homem, já velho, de fartas barbas grisalhas, olhava-o. Nos olhos do velho havia tanto de dor como de embaraço. Aparentemente, havia razões para tal incómodo. O homem estava caído, aleijado e indefeso. E vestia à Pai Natal, de fato vermelho, gorro com borla branca e botas pretas.
– Quem é o senhor? E como entrou na minha casa?
– Meu filho, não sabes quem sou?!
– Não me vai dizer que é o Pai Natal e que entrou pela chaminé!
– Isso mesmo…
– Acha-me com cara de parvo? Vou é chamar a polícia.
– Espera, espera. Acho que parti uma perna.
– A polícia leva-o ao hospital. Vou chamar…
– Hélio, espera, por favor!
– Como sabe o meu nome?!
– Ora, filho… tenho de saber essas coisas, não achas?
– Outra vez a história do Pai Natal…
– Filho, pensa, vê! Há algum vidro partido na janela? A porta está arrombada? O fecho de corrente dupla que ali tens está inteiro! Por onde podia ter entrado se não pela chaminé?!
– Mas… mas o senhor não caberia por ali abaixo…
– Ora, filho, aí é que entra a magia do Pai Natal. Entro em qualquer lugar. Sem problemas.
– Ah, é? Então por que se despenhou aqui?
– Velhice, meu filho. Chega a todos…
– Bem, digamos que… suponhamos que acredito em si. Que veio aqui fazer?
– Ora, que pergunta! Vim trazer-te uma prenda. Era para a encontrares pela manhãzinha, mas agora está tudo mudado. Toma lá…
– Mas… isto não é para mim! É para o Hélio Taveira! O vizinho do 35…
– Nossa Senhora das Neves! Que engano terrível! Estou mesmo velho, filho.
– E agora?
– Agora tenho um problema sério, a menos que… a menos… Filho, vais tu entregar a prenda ao vizinho!
– Eu?!
– Sim, filho. Vais tu, peço-te. Em nome da magia do Natal e porque és um bom homem. E… ahn… para a minha folha de serviço continuar impecável.
– Mas, como vou eu fazer isso?
O velhinho explicou: primeiro, teria de vestir o fato vermelho, colocar o gorro e calçar as botas pretas. Ficou tudo muito largo, aí uns três números acima, mas o importante era salvaguardar a imagem, apesar de faltarem as barbas fartas e grisalhas. Afinal, sempre era uma emergência.
Depois, Hélio teria de arranjar maneira de entrar em casa do vizinho. Pela chaminé, nem pensar. Não caberia. Tampouco poderia ensinar-lhe a magia de descer por qualquer chaminezinha. Era proibido.
Finalmente, deixaria a prenda para o vizinho e voltaria para a cama. Quanto a ele, Pai Natal, já não estaria quando ele voltasse a casa. Alguém, que não identificou, viria buscá-lo, voando. Ah!, Hélio poderia ficar com o fato, o gorro e as botas, desde que não dissesse a ninguém uma palavra sobre aquela noite.
Poucos minutos depois, Hélio ronda a casa do vizinho. Experimenta a porta principal. Fechada. Uma janela. Também fechada. Outra janela. Aberta!
Hélio calcula a altura da janela, aí pelo seu peito, toma balanço e salta. O salto é perfeito, quase um voo, mas as roupas largas deitam os cálculos a perder. Já dentro da casa do vizinho, o Pai Natal improvisado não consegue dominar o que se poderia chamar de aterragem para tão bem sucedido voo. Com o fragor de um trovão, Hélio derruba uma estante, carregada de livros e “bibelots”. Um cãozinho amarelo, minúsculo, entra em cena, latindo desalmadamente.
Hélio está no chão, gemendo de dores, com o pé direito tão inchado que mal cabe na bota enorme de Pai Natal. À porta da sala, de espingarda em punho, surge o vizinho.
– Vizinho Hélio, que raio vem a ser isto?!
– Vizinho… ui… vou… ai… contar-lhe. Mas… ui… não vai acreditar!
Fonte: “A Noite dos Prodígios e outras histórias”, edições Salamandra, 2006
Carlos Tomé
Notas Biobliográficas:Nasceu em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores. Jornalista desde 1969, tendo iniciado sua carreira no “Diário dos Açores”. Foi dirigente nacional do Sindicato dos Jornalistas. Foi Director de Informação da RTP. Ganhou, em 1989, a primeira edição do “Prémio Açores” de reportagem, com um trabalho sobre a colonização açoriana do Rio Grande do Sul. É, desde Setembro de 2007, assessor para a Comunicação Social do Presidente do Governo Regional dos Açores. Publicou A noite dos prodígios e outras histórias (2002),contos, Morreremos amanhã, romance, Solidão, conto, na antologia Contos de Algibeira (Casa Verde,Brasil), 2007. Estava deserta a Rua Cidade de Porto Alegre,conto,na Revista Magma (CM Lajes do Pico,Açores),2008.
Créditos: 1. Onésimo T.Almeida
2. Acervo Blog Comunidades