O Dia de Reis era, na minha aldeia – em minha casa, de certeza -, mais importante do que o dia de Natal. Tal devia-se muito aos grupos de ‘Reises’ que, de tarde e durante a noite de cinco para seis de Janeiro, iam de casa em casa, cantar ao Menino, desejar os ‘buns’ anos e brindar com aguardente e figos passados.
Há sessenta anos, havia dois grupos, o da Banda Ribeira e o da Banda Beira. Ambos eram formados por três ‘pequenos’ entre os sete e os doze anos, que representavam os reis, ostentando coroas de papelão enfeitadas com papel de seda e embrulhados em coloridas colchas a fazer de túnica. Nas mãos, um levava o turíbulo, outro a naveta e o do meio uma caixinha mealheiro onde os visitados punham a sua oferta. Seguiam-se, no cortejo, os tocadores do bandolim, da viola, do violão, do pandeiro, dos ferrinhos, das castanholas – um deles, o do ti Jonin, tinha uma rebeca e o outro, por vezes, um cavaquinho -, e o rancho dos pastores em que o mais alto deles, de noite, levava à cabeça uma ‘petromax’ a mostrar o caminho. As músicas, diferentes de ano para ano, eram normalmente importadas doutras freguesias, de Santo Amaro, dos Rosais, da Ribeira Seca. O ensaiador levava a viola e as quadras, essas muitas vezes inventadas por ti D’Inácia, aprendia com amigos ou conhecidos as novas melodias, solo e coro, e vinha ensiná-las ao respectivo grupo. Os ensaios faziam-se nos longos serões do Inverno.
O grupo da Banda Ribeira, onde fui rei duas ou três vezes, fazia ensaios no palheiro da tia Leal, no Canto dos Sabugos, ensaiado Vital Barcelos e Manuel Leal, e o da Banda Beira treinava na loja da casa do ti Jonin, ao pé da igreja, dirigido por José da Horta, filho do luso-americano. As letras, em redondilha maior, contavam a história dos três Magos: «Viram vir os três reis magos / Das partes do Oriente / Que vêm a visitar / A Jesus omnipotente», e insistiam sempre no convite aos pastores: «Pastores tende confiança / Vamos a Belém ver Jesus / Nosso encanto nossa esp’rança / Nossa glória nossa luz».
Entre os grupos, havia grande rivalidade. Ambos tinham espiões que, pela calada da noite, tentavam escutar os ensaios um do outro e avisar o ensaiador. Depois, parodiavam-se mutuamente. Um conterrâneo recorda o sucedido no ano de 1950 em que decidiram desafiar-se à porta da igreja. Curioso o arremedo da sátira popular ‘Matias Leal’.
Vem primeiro o do Canto dos Sabugos. Alguém canta:
Tu tarde chegaste – tu tarde vinheste
Ó José da Horta – bate a outra porta
Reponde-lhe o da Banda Beira:
A tia Leal – não sabe o que diz
A filha mais velha – quebrou-lh’o nariz
Vai o da Ribeira:
Tu tarde vinhestes – ó José d’abrolhos
Ou vens devagar – ou tiro-t’os olhos
Ao que o outro responde:
A tia leal – já não tem bolota
A filha mais velha – trancou-la na porta
E o despique continuou com assobios e palmas do povo que entretanto se juntou no adro.
A noite de Reis acabava por ser o ‘dia’ mais bonito de todos.
Olegário Paz
(5 de Janeiro, 2010)
Olegário Paz nasceu em São Jorge, Açores e vive na Amadora, Portugal.
Nota sobre imagem: Os Três Reis Magos (Baltasar, Melchior and Gaspar), Mosaico séc. VI, Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, Ravenna, Itália.
Credit photo to Nina Aldin Thune.