A Ilha de Santa Catarina – Ilha da Magia, Ilha dos Casos Raros, Ilha das Bruxas – continua mantendo grandes afinidades com as Ilhas do Arquipélago dos Açores. As travessias, em todos os sentidos, sempre foram lentas, de modo a provocar transformações quase insensíveis. Essa chamada 10ª Ilha não foi apenas povoada por emigrados da Terceira, da São Jorge, do Faial, do Pico e de outras Ilhas. A condição de insularidade, embora sem tanta drasticidade geográfica, calou fundo na alma do seu povo, preservando por séculos as tradições impregnadas em seu coração, em seu agir, em seu falar. A personagem mais típica habitante nos seus quase exclusivos litorais é a do manezinho, e não fique cabreiro não, seu aluado, senão leva um esculacho!
E não apenas a cultura popular se mantém impregnada de açorianidade. Literariamente, os intercâmbios, as correspondências, as afinidades persistem e se multiplicam. Entre os escritores nascidos ou abrigados nesta Ilha aprazível, diversos mantiveram nas suas veias o mesmo sangue herdado dos ancestrais açorianos: Marcelino Antônio Dutra (1809-1869), de cuja autoria é o considerado primeiro livro da nossa literatura – Assembléia das Aves (1847), tendo sido seus avós originários das Ilhas: Pico, Faial e Madeira. Um filho seu, Antero dos Reis Dutra (1835-1911), foi igualmente poeta, do qual se preserva o livro Miscelânea (1910). João Silveira de Sousa (1824-1906) era de marcada ascendência açoriana, autor de obras jurídicas e do livro de poemas Minhas Canções (1848), bem como sua sobrinha Delminda Silveira (de Sousa) (1854-1932) deixou vasta obra poética nos volumes: Lizes e Martírios (1908), Cancioneiro (1914), Passos Dolorosos (1932) e Indeléveis (1989), com muitos outros inéditos incluídos na sua Obra Completa (2009).
Independentemente de sangue açoriano a circular em suas veias, diversos escritores catarinenses, ilhéus por nascimento ou por opção e adoção, produziram obra literária de profundas e constantes ressonâncias da cultura açoriana. Entre eles, o primeiro ficcionista de destaque em Santa Catarina, Virgílio Várzea ((1865-1941), criador do marinhismo na literatura latino-americana, que registrou caracteres populares, tradições folclóricas, modos de vida, farinhadas, religiosidade dos legítimos habitantes da Ilha de Santa Catarina, na mais lídima impregnação açoriana, sobretudo no seu livro de contos Mares e Campos (1895). Seguiu-lhe os passos Othon da Gama d’Eça (1892-1965), de cuja autoria é o livro Homens e Algas (1957), um conjunto de contos e crônicas da mais profunda solidariedade humana para com os desvalidos pescadores, cuja sina era nascer, viver e morrer no mar. Não menos importante foi a ficção de Almiro Caldeira de Andrade (1921-2007), conferindo constante referência à açorianidade em muitos dos seus romances, mas de forma concentrada na trilogia Racamaranha (1961), Ao Encontro da Manhã (1967) e Arca Açoriana (1984). Franklin Cascaes (1908-1983), o mais constante e sério pesquisador das tradições açorianas na Ilha de Santa Catarina, pesquisa consubstanciada em centenas de esculturas, desenhos e narrativas, diversas delas selecionadas e publicadas nos dois volumes de O Fantástico na Ilha de Santa Catarina.
Entre os escritores catarinenses que decididamente abraçaram a tradição açoriana e em torno da mesma desenvolveram grande parte da sua produção literária deve ser incluído, primeiramente, Flávio José Cardozo (1938) que, nos dois livros de contos Singradura (1970) e Zélica e Outros (1979), resgatou, ao tempo da ameaça de universalização provocada pela televisão, inúmeros traços de caracteres, vivências, tradições dos habitantes da Ilha de Santa Catarina, em narrativas de sabor jocoso, leve e fluente. Igualmente seja devidamente reconhecido Aldírio Simões (1942-2004), o criador do Troféu Manezinho da Ilha, objetivando resgatar o orgulho e o sentimento ilhéu, e que registrou em suas crônicas um autêntico panorama dos manezinhos da ilha, seus tipos, sua boemia, sua linguagem, selecionando dos jornais os melhores trabalhos para os volumes: Sou Ilhéu, Graças a Deus (1990), Fala Mané (1998) e no Retratos à Luz da Pomboca (1997). Também seja devidamente valorizado Amaro Seixas Neto (1924-1984), que escreveu aquelas crônicas sobre a “Ilha dos casos raros” e coletou inúmeros “Ditos Populares” da Ilha, obra infelizmente não devidamente preservada e publicada.
Prosseguem, em muitos escritores catarinenses, as afinidades com a Ilha de Santa Catarina, seu mar, sua gente, suas tradições açorianas. Osmar Pisani (1936-2007), poeta de produção lenta, metódica, e selecionada, tem pelo menos dois livros muito ligados a esta Ilha: As Raízes do Vento (1976) e Variações Lírico-Poéticas sobre o Boi-de-mamão (2003), podendo-se incluir igualmente Raízes D’Além Mar (2004). Bento Silvério (-1987) foi um autêntico manezinho da ilha, jornalista e escritor de promissor futuro, com atividade marcada pelo bom senso, a dedicação e o equilíbrio, não apenas no jornal, mas nos contos de Entropia & Evasão (1980) como de O Último Desejo (1984), infelizmente cedo arrebatado da vida. Pinheiro Neto (1948 -) tem a paisagem e a gente da Ilha de Santa Catarina indelevelmente registradas nos seus poemas e contos, especialmente nos livros Minha Senhora do Desterro (1981) e Histórias de (a)mar (2009). Semy Braga (1947 -), médico, artista plástico e poeta, absorve a natureza insular, suas manifestações culturais, seus festejos e tradições populares, transformando-os em poesia. Raul Caldas Filho (1940 -), jornalista, cronista e ficcionista, não pode estar ausente nesta rápida síntese, porque a Ilha de Santa Catarina constitui seu reino adotivo, o que transparece sobretudo em alguns livros seus: Delirante Desterro (1980), Oh! Que Delícia de Ilha (1995), Oh! Casos e Delícias raras (1998) e ABC do Manezinho (2003). Lembre-se, ainda, Aguinaldo Luiz Gouvêa (1927 -), que publicou o livro de contos Os Açoritas (2003), parte tratando dessa temática, que focaliza sua viagem a Santa Catarina, sua religiosidade, lendas e cultura dos açorianos.
Na área do ensaio, tantas seriam necessárias as referências, que seria necessário prolongar indefinidamente este texto. Anotem-se apenas os nomes de Oswaldo Rodrigues Cabral (1903-1978), de vasta obra histórica, como A respeito dos corações e dos pão-por-Deus (1949), Os açorianos (1951), Antigos folguedos infantis de Santa Catarina (1982) e Nossa Senhora do Desterro (1971); Walter Fernando Piazza (1925 -), autor de vasta e criteriosa obra de pesquisa histórica, com destaque, neste tema, para Aspectos Folclóricos Catarinenses (1953), A Epopéia Açórico-Madeirense (1992). Osvaldo Ferreira de Melo (1929 – ) escreveu o livro A Rota Açoriana na América do Sul (1991). Nereu do Vale Pereira (1926 -), autor de obras como: Ribeirão da Ilha – Vida e relatos; Os engenhos de farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina; Origem e raízes do Boi-de-mamão catarinense, Ritos de Passagem (1975), Folclore ergológico, O sentimental e o folclórico Pão por Deus (1980), As festas do Divino Espírito Santo – origens (1985), Sobre a pombinha açoriana (1988), A simbólica do Espírito Santo (1997). Lélia Pereira Nunes publicou há pouco o substancial ensaio Caminhos do Divino: Um Olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina (2007).
Estes rápidos apontamentos não esgotam o tema das relações literárias entre a Ilha de Santa Catarina e as do Arquipélago dos Açores. Nem constituem pretensão dos mesmos. Demonstram, entretanto, que, não fossem sólidas e enraizadas tais relações, essa já volumosa produção literária não teria justificativa. Irmanemo-nos em contínuas travessias!
Lauro Junkes
Ilha d
e Santa Catarina
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Sobre o escritor LAURO JUNKES:
Professor doutor,titular da cadeira de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.Um grande estudioso e apaixonado pela Literatura catarinense. Dedica-se há mais de trinta anos à pesquisa da produção literária com cerca de vinte obras publicadas sobre a temática. Como Presidente da Academia Catarinense de Letras tem sido um grande divulgados da produção literária no Sul do Brasil. Uma voz admirada e respeitada para além das arcadas da academia. Um nome querido de toda comunidade catarinense.
Produção Literária:Presença da Poesia em Santa Catarina(1979),Anibal Nunes Pires e o Grupo Sul (1982),O mito e o rito (1987),Aliteratura de Santa Catarina (1992),”Açores-Travessias”(2003). Organizou inúmeras antologias e obras completas. das antologias cito “Caminhos do Mar,Antologia Poética:Açorianos e Catarinenses”(2005) junto com Urbano Bittencourt e Osmar Pisani. Um projeto que a Fundação Aníbal Nunes Pires foi parceira e que participei da sua coordenação.
Da sua vultuosa biobliografia destaco a sua determinação e dedicação sem limites na competente e exaustiva pesquisa e na organização das Obras Completas, Coleção Academia Catarinense de Letras que já conta com trinta e seis autores publicados.
Sem dúvida, por sua grande contribuição à Cultura de Santa Catarina, por sua sabedoria, por sua força que vai além dos limites físicos. Por uma vida dedicada ao magistério e à literatura Lauro Junkes é um nome que dignifica o estado barriga-verde e que orgulha a nossa gente.
Imagens: Acervo Blog Comunidades e Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes.