A PINTURA DE FERREIRA PINTO E A LITERATURA AÇORIANA
A PINTURA DE FERREIRA PINTO
VISTA PELA JANELA DO MEU OLHAR
Serve esta epígrafe para estabelecer, digamos assim, o mote da minha exposição, que se prende mais com a “música” que nela perscruto e leio do que com os materiais intrínsecos ao corpo interno da obra. “Leitura”, por isso, é precisamente o que farei, pois ela faz parte do meu deleite e também do meu ofício.
Acredito que interpretar uma obra de arte constitui um acto de cultura; isto é, de generosidade e partilha, pois sem leitura as obras conservam-se (sejam do domínio das artes plásticas ou das letras) no seu estado mudo. Compete a quem as observa uma relação interactiva, no sentido de aos poucos descobrirem, num determinado quadro, rotas de pensamento e de sentimentos e, por essa via, aperceberem-se de mundos-outros dentro de si. A partir daqui a obra torna-se infinita: ganha fala, conquista ecos, aprofunda emoções.
A leitura, ou interpretação duma obra, exige duas operações: uma, na direcção centrípeta, que nos leva a descortinar o sentido daquilo que vislumbramos na obra; a outra, na direcção centrífuga que, defluindo da relação através da memória, nos conduz e nos leva a relacionar o universo interno à obra com os sentidos convencionados fora do próprio quadro, e que têm a ver com os aspectos da experiência e mundividência
de cada pessoa. A estas operações concorrem concomitantemente a percepção e a intuição, caminhos por excelência de aproximação, que transportam o sujeito de análise para uma auto-referencialidade: de questionamento, reflexão, conquista de sensações, e quantas vezes de epifanias – de catarse e elevação.
É neste sentido que abordarei a obra de Ferreira Pinto, que conheço e acompanho há cerca de dez anos. E o que realmente mais me fascina neste artista é a sua imensa novidade, resultante duma imaginação profícua, a maior parte dela inspirada na literatura, particularmente, na poesia e ficção; é um homem que não se deixa ficar pelo muito que vai lendo e vendo fora e dentro do país, no que respeita à teoria, às tendências e às técnicas propriamente específicas da arte. Para ele tudo isso é fundamental, indispensável certamente, mas, na sua exigência, é necessária a respectiva complementaridade; ou seja, esse sopro de alma que Ferreira Pinto encontra na literatura. Por isso, quem se desloque ao atelier deste artista verá como naquele espaço exíguo se misturam e coabitam telas e livros, muitos livros.
De exposição em exposição a diversidade de obras é notória em temas, em formas e em cores. O artista não se cansa, avança sempre, expõe-se ao risco; é, frente à tela, um timoneiro e ao mesmo tempo um aventureiro de desusado arrojo. Aposta por isso numa força interna que, ao recusar-se a si mesma (através de traços que se contrariam), cria a sua própria semiose. À técnica do traço, em movimentos polares e antagónicos, adiciona-lhe Ferreira Pinto:
1. A curva, que tanto serve de equilíbrio ao caos, como de focagem de um indício particular (refira-se aqui, num aparte, a tendência para a circularidade do Ovo, imagem recorrente na poesia de Nemésio), serve ainda para implementar uma infinita concentração que potencie sinais implícitos que, de outra forma, poderiam passar desapercebidos, quando eles próprios necessitam de se organizar no sentido de, pertencendo ao cosmos estabelecido pelo artista, abrirem espaço para a fuga, a liberdade, a saída. Nos trípticos, as curvas servem para unir o que está fisicamente separado. É a ordem no caos e o caos na ordem.
2. A janela, essa tem a função de delimitar e simultaneamente expandir, desta feita, aquilo que podemos considerar o emblema máximo de Ferreira Pinto, naquilo que dizíamos atrás, em relação à ousadia deste artista, que leva ao máximo as transgressões, rompendo com os códigos (dentro e fora do quadro) para os colocar numa relação dialógica de cruzamento entre as forças da tela e as forças do mundo exterior, no intento de abrir, novamente, perspectivas várias para uma aproximação cada vez mais estreita entre o objecto artístico e o seu leitor ou observador.
Esse é o diálogo que aqui se propõe, ao se estender, por via deste artifício, o que está dentro do quadro para o resto da tela, e, das bordas desta, para uma relação directa e física com o sujeito que a mira – esse mesmo sujeito que intui, sente e cheira, quase por osmose, a textura da tela, das formas e das cores. Há como que, digamos assim, uma continuidade do quadro em nós.
Toca-se, desta forma, o plano das afectividades, hoje tão reclamadas, num mundo que a todos desagrega e distancia cada vez mais. Aqui temos novamente a Arte a salvar o coração da humanidade.
3. A mise-en-abîme (termo técnico da crítica literária, que, para este efeito, podemos traduzir literalmente por “metido em abismo”) constitui uma das últimas novidades de Ferreira Pinto. Nos seus efeitos, este artifício comunga um pouco dos dois anteriores, mas acrescenta algo mais a cada um: por um lado, garante a coesão interna da narrativa, que se desdobra em consecutivas camadas sobre si própria, reiterando uma determinada temática, ou mesmo história, como acontece ultimamente com as caravelas e vapores que nos transportam ao tempo dos Descobrimentos; e, por outro lado, contribui, à maneira de uma caixinha chinesa, para acentuar o misterioso das águas e dos barcos, cujo fundo se procura até à vertigem. Mas, como o fim é o princípio, eis que um traço quase imperceptível, envolvendo e entrelaçando os restantes, se nos afigura como um grande navio, que, transcendendo a dimensão do tempo, nos deixa um sentimento de abismo, de nostalgia, mas também de procuras. Um jogo, certamente – tal como a vida, ela própria um jogo entre a morte e a vida, o bem e o mal, a claridade e a escuridão.
Tempo no tempo é mais uma exposição que se inscreve na tradição artística dos Açores. Ferreira Pinto, açoriano por opção há mais de vinte anos, apercebeu-se desde cedo da profundidade histórica, geográfica, vulcânica e imagética destas ilhas, cuja história não começa com os descobrimentos, antes se reporta ao muito longe, ao tempo da criação, quando torrões eram semeados arquipelagicamente na imensidão das águas atlânticas. Esta é a sua matéria-prima: um tema a que ele recorre, numa clara tendência pós-modernista de revisitar, reelaborar e reinterpretar não só a história ma também a proto-história: uma dupla natureza que assenta, por um lado, na ancestralidade telúrica e cosmogónica, que vai muito para além do português dos descobrimentos; e uma outra que deriva da coragem desses homens, que, rompendo com um mundo incógnito, partiram para ficar e garantir que a meio Atlântico se cumprisse Portugal – tal como hoje acontece com um Ferreira Pinto… de quem se espera muito mais telas: de inquietar a alma e remir o olhar.
Adelaide BATISTA
Ponta Delgada, 16 Setembro 1999