(…cont.)
Matança do porco. Marcar a data e convidar com a necessária antecedência os parentes, os amigos e «gente de mais aquela» era a primeira coisa a fazer para evitar sobreposições[1]. Sempre bem tratado desde marrão, era engordado pelas mulheres com fartas gameladas de couves, abóbora, batata-doce, carne de baleia secada ao sol no Verão, como nos conta Dias de Melo em Reviver: na Festa da Vida a Festa da Morte, obra quase exclusivamente dedicada à matança do porco. Eram preparativos: cavar os inhames e apalavrar o peixe, arrancar as cebolas, ir à salsa, arranjar laranja azeda para o tratamento das tripas, comprar temperos e, claro, a farinha suficiente para as fornadas de pão e bolo. A lenha era preciso cortá-la sem esquecer juntar as urzes necessárias para acender o forno e chamuscar o bicho.
A festa dava direito a três dias de quebra da rotina[2]. Na véspera, cozia-se o pão os bolos, o arroz-doce, e pela noite dentro era a vez de tratar da salsa, das cebolas, do cebolinho em rama para as morcelas e cozer peixe, galinhas e inhames, trabalho das mulheres, enquanto os homens, depois de prepararem as coisas para o dia seguinte, se entretinham no jogo das cartas, petiscando. Era a «noite das salsas». O dia da matança propriamente dito consistia no abate do porco e recolha do sangue para as morcelas, na chamusca com vassouras de urze a que se ateava fogo soprando um pau de lume trazido da cozinha, na trabalhosa raspagem e lavagem antes de ser aberto para lhe retirar as «miudezas» e depois levado para a loja ou para a atafona onde seria pendurado, de cabeça para baixo ou para cima conforme o costume da terra. Este ritual era interrompido várias vezes pelo dono da casa ou alguém a seu mando, de garrafa e copo nas mãos, para o brinde de aguardente. Nisto chegava a hora do jantar, inhames e peixe cozido bem regado, arroz-doce, bolos, aguardente, angelica para as mulheres. Um dos momentos mais esperados por raparigas e rapazes era da lavagem das tripas. No mar ou no tanque, longe dos ‘velhos’, enquanto uma ou outra mulher mais experiente orientava o serviço, ocupavam-se com brincadeiras, piadas, namoros. Mas o maior convívio e partilha era à ceia. À volta da mesa, apertadinhos para levar tanta gente, sentavam-se a começar pelos mais velhos e pelos homens – mulheres só as «de mais aquela» a acompanhar os maridos que as outras iam comendo na cozinha e na mesa depois dos homens. A especialidade eram já as primeiras morcelas fritas e os guisados de fressura, sempre acompanhados de bom vinho guardado propositadamente para a matança num pipo mais pequeno. Falava-se de tudo e de todos, contavam-se anedotas, bebia-se mais um copo e passava-se à jogatina do truque ou da sueca, uns, os mais velhos, outros, os novos à chamarrita e aos balhos de roda, enquanto a miudagem retoiçava. Noite já bem avançada, raro deixava de comparecer um grupo de cantadores das morcelas: «Ainda cortai mais ũa / E assai-a nũa brasa, / Que aqui estão muito rapazes, / Nã vos deixam nada em casa»[3]. O «dia adiante», último dos três, começava de madrugada com o desmanchar do porco, para um lado o toicinho, para outro carnes magras, umas para derreter outras para salgar nas barças. O almoço, aí para as nove, dez horas, já o conduto era de torresmos de vinha-d’alhos[4].
Era tal a importância do porco na tradição picoense, e não só, que a matança se tornara numa das festas familiares mais concorridas dos que tinham emigrado para os Estados Unidos «dezenas, talvez centenas deles, nem um faltava, e era comer e beber até mais não aguentar, e era os velhos a jogar ao truque, os novos a bailar – tudo tal e qual como se estivessem na Ilha»[5].
Entrudo. É mais um assunto a que Dias de Melo regressa muitas vezes. Não ignora a palavra Carnaval mas não a utiliza, ou melhor, faz uso dela em “E o Carnaval Continua”, título dum conto de Cidade Cinzenta, como metáfora de certo regabofe social em que o mais fraco é sempre o espezinhado.
Provocar o riso da assistência nas diversas manifestações festivas que se realizam nos dias de Entrudo, mormente na Terça-feira, é o grande objectivo, mesmo que para tal haja que abandonar o registo corrente da língua. Exemplo significativo é o dos bandos que Dias de Melo arquiva em Na Memória das Gentes, II, 2, e que compara a certos autos vicentinos: um histrião conta em quadras de redondilha maior, pouco a pouco interrompidas pelos berros estridentes do grupo de mascarados que o seguem, histórias desconchavadas que caricaturam cenas da vida da terra seguindo o guião da antiga[6] sátira do testamento do asno: uma burra morre e deixa o corpo em testamento explicitando as entidades a quem destina as várias peças do seu cadáver, a carne à Junta de Freguesia, a pele «da cabeça até ao cu» ao «Cagado» que não tem que vestir, etc.[7]
Ocupam lugar de relevo as tradicionais danças (de arcos, dos picões): [P]inchavam os rapazes vestidos de soldadinhos ou marujos do rei, calças de cotim branco, camisas de popelina branca, as raparigas, que eram rapazes, vestidas de minhotas, roupas de boa chita de cores berrantes, nas mãos erguidas, nos braços abertos dos rapazes e das raparigas arcos de rendas brancas, e muitas fitas e fitinhas». O grupo, dirigido por um mestre de voz forte e autoritária, caracterizado de general oitocentista, reunia à sua volta muita gente da freguesia que se juntava para ver, ouvir e aplaudir entusiasmada os passos e voltas dos dançarinos[8]. Mas o ponto alto da festa estava reservado aos «reis de todo aquele pagode»[9] os mascarados de ‘velhos’. Mal trajados, na cara, uns com um bocado de cartão dobrado a jeito e amarrado atrás da cabeça, quatro buracos para olhos, nariz e boca, outros com apenas um trapo velho e sujo preso à testa e ainda outros apenas com o rosto pintado de negro com cinza e ferrugem. De entre as diabruras que praticavam pelos caminhos correndo atrás da miudagem que fugia a sete pés, destacava-se uma comparável a certo rito de iniciação primitivo que consistia em, agarrando os rapazes, arrastarem-nos para a taberna obrigando-os a pagar bebidas e sujeitando-os ritual do «trapo encardido» com que lhes esfregavam a cara e da «linguiça rançosa» que eram obrigados a provar[10].
Religião Popular. Como todo o povo dos Açores, o da ilha do Pico é bastante religioso. As dev
oções ao Bom Jesus e ao Espírito Santo são, seguramente, as mais generalizadas na ilha. Tal não anula, contudo, outras crenças, umas mais próximas outras menos da religião católica. É vulgar a fé nos gestos que protegem contra o medo – benzer-se ao passar perto de cemitérios, ou que atraem as bênçãos do céu – traçar uma cruz sobre o pão acabado de amassar[11].
Conta-nos Dias de Melo que em miúdo ele e o amigo Artur se deliciavam a inventar histórias que metiam bruxas, feiticeiras, lobisomens[12]. Em Vinde e Vede, criou uma personagem, Maria da Pinta Loura, especializada em «rezas e esconjuros». Benzedeira de fama «com fuminhos de incenso e raminhos de alecrim, mais as rezas e os bocejos» imunizava botes caídos na armadilha de feiticeiras, expulsava almas do outro mundo, libertava de quebrantos raparigas aparvalhadas pelo abandono dos namorados ou desesperadas ao confirmaram uma gravidez indesejada[13]. O curandeiro frei Bento de Tempos Últimos é outra personagem significativa neste domínio. Doentes, particularmente os «desenganados», recorriam a ele e eram curados à força de gestos teatrais e conversas com Deus.[14] Caso em que não havia antídoto era o das «tropelias do arco da velha» perpetradas pela alma do defunto Matos Souto por não terem cumprido o legado que deixara[15].
Mas é em Na Memória das Gentes que encontramos testemunhos de ritos diabólicos, à maneira dos descritos no célebre Livro de S. Cipriano, como é o caso do sacrifício horripilante do gato preto: «O senhor Belarmino veio ũa vez aqui ver meu avô – conta Maria de L. Gomes -. E agora ele disse que gostava de ver do diabo, pegou num livro das diabólicas […] e que leu nele que era preciso apanhar um gato vivo, um gato preto, e cozê-lo num tacho com água a ferver, e era pra le limpar os ossos, tinham de tirar-le a pélia e a carne dos ossos, e limpar-le os ossos num lenço de seda e pôr nos seus dedos e que fosse ver ó espelho e ele foi e viu-se assim no espelho, e na verdade parecia o diabo, e ele é que parecia o diabo. Ele contou-me isto»[16].
Do que fica dito sobre crenças, lazer, trabalho, vestuário, alimentação pode aquilatar-se do especial cuidado de Dias de Melo em registar para os vindouros, na «linguagem do Povo, que está no Povo, e que está em mim, que sou Povo»[17], ora através de simples referências ora expondo-as em largas e pormenorizadas descrições, outras facetas significativas da vida e da cultura dos seus conterrâneos, para além da aventura baleeira de que é porta-voz por excelência.
Amadora, Outubro de 2009
Olegário Paz
[1] Reviver: na Festa da Vida a Festa da Morte, o. c., p. 113.
[2] Idem, p. 144.
[3] Na Memória das Gentes, II, 2, 1991, p. 134.
[4] Id., 260; cf., também, Inverno sem Primavera, o. c., p. 31.
[5] Das Velas de Lona às Asas de Alumínio, o. c., p. 85.
[6] Um poeta florentino do início do séc. XIX, por exemplo, foi preso quando desenvolveu o mesmo assunto. Cf. Pedro da Silveira, Antologia de Poesia Açoriana, p. 94. s.
[7] Cf. Na Memória das Gentes, II, 2, p. 151 s.
[8] Pena Dela Saudades de Mim, o. c., p. 60; cf. Vida Vivida em Terra de Baleeiros, 1983, p. 28 s.
[9] Pena Dela Saudades de Mim, o. c., p. 58
[10] Cf. Idem, id.
[11] Pena Dela Saudades de Mim, o. c., p. 32. O autor não regista a reza. Nas Flores, por exemplo, dizia-se «San João t’afermente e Sant’Antonho t’acrescente», (Carfa,